TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
98 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL – cindíveis – do todo que compõe a norma. Assim, perante o pedido que foi submetido, o Tribunal, não sendo, evidentemente, um mero autómato de silogismos, deve revelar uma compreensão adequada do seu específico lugar no sistema jurídico-constitucional, limitando-se a confrontar a solução legislativa questio- nada com a Constituição, em particular tratando-se de um processo de fiscalização abstrata preventiva da constitucionalidade. O que, a nosso ver, é perfeitamente possível. Sustenta o Acórdão, a este propósito, que redução do pedido conduziria a que a “linha divisória da esfera ilícito-lícito não só passaria a ser outra – nomeadamente em função do pressuposto ou critério que tivesse sido eliminado –, como, sobretudo, passaria a obedecer a uma diferente teleologia. Ora, tal como não seria conce- bível em sede de fiscalização abstrata sucessiva que, na eventualidade de um juízo positivo de inconstituciona- lidade parcial incidente sobre apenas um desses critérios ou condições, a norma pudesse continuar a vigorar expurgada do critério então considerado inconstitucional – sob pena de ser o Tribunal a redesenhar ele próprio, por via da sua decisão, uma nova fronteira e, assim, uma nova norma –, nesta sede de fiscalização preventiva, a apreciação a realizar pelo Tribunal também não pode deixar de considerar a norma na sua unidade teleológica e a consequente união incindível dos elementos da sua previsão”. Ora, acontece que, no nosso entender, não só o requerente quis efetivamente – e disse-o com clareza – que a linha divisória fosse outra (quis questionar parte do como, mas não o se), como também o paralelismo com a fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade nem sequer se afigura feliz. Na fiscalização preventiva, um juízo de inconstitucionalidade sempre implica, nos termos do n.º 1 do artigo 279.º da CRP, o veto (neste caso) do Presidente República. A normação do Decreto não entrará, pois, em vigor, sem uma reapreciação da mesma por parte do legislador, e o expurgo da norma julgada inconstitucional ou sua reconfirmação por maioria de dois terços dos deputados. Resumindo: onde o Presidente da República afirmou explicitamente que o pedido não visa enfrentar “a questão de saber se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme com a Constituição”, tendo restrin- gido, de forma expressa e consciente, a avaliação requerida a este Tribunal à “questão de saber se a concreta regulação da morte medicamente assistida operada pelo legislador no presente Decreto se conforma com a Constituição”, numa matéria que “se situa no core dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, por envolver o direito à vida e a liberdade da sua limitação, num quadro de dignidade da pessoa humana”, o Tribunal escolheu ir muito mais longe. Tendo-lhe sido solicitado que se limitasse a analisar aspetos concretos do regime jurídico aprovado pelo legislador democrático, o Tribunal entendeu fazer uma análise prévia da constitucionalidade da eutanásia ou do auxílio ao suicídio, em si mesmos considerados. Não devia, nem precisava, de o ter feito. Não devia, porque uma compreensão adequada das exigências dos princípios do pedido e da separação de poderes a isso mesmo conduz. E, mais ainda, não necessitava de dar esse passo, já que, não sendo dono do pedido, o Tribunal é dono do parâmetro. Evidentemente, as dimensões paramétricas constituídas pelo direito à vida, ao livre desenvolvimento da personalidade, à autonomia e liberdade pessoais, sempre poderiam ser mobilizadas para a fundamentação da decisão, ainda que não tenham sido invocadas pelo requerente, no pedido. 2. O Acórdão faz, no nosso entender, uma leitura errónea da norma constante do artigo 24.º, n.º 1, da CRP («a vida humana é inviolável»). Importa evidenciar aquela que é, apesar de tudo, e no nosso entender, a mais importante linha juris- prudencial decorrente do presente juízo: a que sustenta a não inconstitucionalidade de um regime jurídico regulador das possibilidades de morte medicamente assistida, face ao parâmetro do artigo 24.º, n.º 1, da CRP, isoladamente considerado. Ou seja, nos termos da presente decisão, a priori e em abstrato, as exigências axiológicas e jurídico-constitucionais impostas por aquela norma não impedem o legislador democrático de legalizar a antecipação da morte medicamente assistida e introduzir na ordem jurídica causas de exclusão da responsabilidade criminal em sede de auxílio ao suicídio ou de homicídio a pedido da vítima; partilhamos, sem qualquer dúvida, esta conclusão. Aliás, cremos que não poderia ser de outra maneira, pelas razões que em seguida se apresentarão e que, por este motivo, ao admitir a possibilidade (o se), não deve o Tribunal
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