TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

96 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL que a promoção e proteção da vida humana deixe de condicionar-se, ou até de medir-se, pela dimensão do indivíduo enquanto ser-com-os-outros, para passar a guiar-se fundamentalmente pela dimensão da pessoa enquanto ser-aí, tornando-se no essencial dependente da decisão a que esta, enquanto sujeito autónomo e moralmente capaz, livremente sujeite as suas próprias circunstâncias. É certo que a supressão da responsabilidade criminal do médico orientador e demais profissionais de saúde pelo ato que causa ou ajuda a causar a morte do doente cria, no domínio das autolesões e heterolesões consen- tidas, um espaço livre de direito penal. Mas daí não se segue que dê origem a um espaço de vazio de direito. De acordo com o sistema de controlo prévio em que assenta o regime constante do Decreto – congruente, aliás, com a posição do Comité de Direitos Humanos da ONU referida no Acórdão –, a tutela da vida humana é assegurada através do conjunto das normas de organização e de procedimento que fixam as condições em que a antecipação da morte medicamente assistida pode ter lugar, estabelecem o momento e o modo da sua comprovação e disciplinam a atuação do médico ou profissional de saúde que concretiza a decisão do doente através da cedência para autoadministração ou da heteroadministração de fármacos letais. Tendo em conta essa sua função, todas estas normas encontram-se sujeitas, como se afirma no Acórdão, a particulares exigências de determinabilidade, devendo comportar um grau de densificação congruente, quer com o especial valor inerente à vida humana, quer com a irreversibilidade do resultado a que esta passa a poder ser sujeita mediante decisão autodeterminada do doente. É esta exigência de determinabilidade decorrente do princípio do Estado de direito, neste domínio particularmente intensa, que, partilhando a posição da maioria, creio não ser satis- feita pelo conceito de “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”. Tendo por certo que não só o sofrimento intolerável decorrente de doença incurável e fatal pode constituir objeto de uma ponderação diferenciada da antecipação do fim da vida em face do desvalor que continua a exprimir-se nos tipos legais do homicídio a pedido da vítima e do auxílio material ao suicídio, creio também caber ao legislador o dever de densificar o mais possível o universo das condições clínicas não letais situáveis no mesmo plano, designadamente por referência ao tipo e ao nível de incapacitação que produzem e ao grau de dependência ou de perda de autonomia que impõem ao doente, tanto mais quanto certo é que, de acordo com o modelo de controlo ex ante perfilhado no Decreto, se trata aqui de normas que estabelecem pressupostos de atuação, e não apenas critérios de apuramento, sempre retrospetivo, de responsabilidade. Neste contexto, aliás, em que as hipóteses de antecipação da morte medicamente assistida não punível são recortadas a partir de uma condição clínica radical, não é, em meu entender, determinante o facto de a renún- cia à tutela penal da vida humana nas condições estabelecidas no Decreto se fazer através da paralisação tanto do tipo legal do auxílio material ao suicídio como do tipo legal do homicídio a pedido da vítima. Apesar de entre uma atuação e outra interceder em geral a diferença que se funda no «domínio sobre o ato que de forma imediata e irreversível produz a morte» (ponto 17 de Acórdão), a verdade é que, num contexto de antecipação da morte medicamente assistida não punível que tem por referência a situação de sofrimento intolerável gerada por determinada condição clínica extrema e que assegura, através das garantias inerentes ao procedimento, que a decisão de pôr termo à vida constitui expressão verdadeira e genuína da autodeterminação esclarecida do doente, qualquer distinção que a esse título se pretendesse introduzir outro significado não teria, senão o de sujeitar a pessoa que se decidiu pelo termo da vida à provação final de ser autora material da sua própria morte. 5. Nos pontos anteriores procurei expor as razões pelas quais um regime de antecipação de morte medi- camente assistida recortado a partir do carácter insuportável do sofrimento provocado por uma condição clínica extrema, assente num procedimento baseado na conjugação de um modelo médico de comprovação e de execução com um sistema de controlo ex ante , capaz de assegurar o exercício esclarecido da autodetermi- nação do doente e cuja explicitação observe um grau de determinabilidade compatível com a especial natu- reza do direito à vida, enquanto bem fundante de todos os demais direitos fundamentais, não é incompatível com o limiar mínimo de proteção da vida humana que se traça a partir do artigo 24.º da Constituição.

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