TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
95 acórdão n.º 123/21 relevam do «propósito de prevenir o perigo (abstrato) de uma decisão apressada e precipitada pelo termo da vida» ( idem, “Comentário ao artigo 135.º”, § 12, p. 139). A segunda razão prende-se com o próprio compromisso a que a Constituição vincula o legislador no sentido da proteção e promoção da vida humana, mesmo perante decisões refletidas e ponderadas. Ainda que na opção pela antecipação da morte motivada pelo simples cansaço de viver fosse possível identificar, com infalibilidade máxima, um nível de determinação congruente com a irreversibilidade do resultado gerado pela sua concretização, a legitimidade material da incriminação do homicídio a pedido da vítima e do auxí- lio material ao suicídio continuaria a poder afirmar-se por referência ao valor da vida humana, mantendo na ligação a este bem o seu imprescindível referente axiológico. Do ponto de vista da necessidade de tutela penal, o sentido da proibição penal quer da ablação consentida da vida de outrem, quer da colaboração no ato suicidário do seu titular, continuaria a poder discernir-se na diminuição das possibilidades de concre- tização da decisão de antecipação do fim que deriva da exclusão da liberdade de qualquer ação causal ou colaborativa de terceiros. 4. Do ponto de vista jurídico-penal, a principal novidade do regime de antecipação da morte medica- mente assistida não punível consiste na atribuição de eficácia ao consentimento no âmbito dos crimes contra a vida. Se o consentimento – “decisão da própria pessoa” – constituía até agora uma condição sempre e em todos os casos irrelevante no plano da justificação da conduta ou da exclusão da punibilidade, o regime cons- tante do Decreto atribui-lhe eficácia nas condições que para o efeito define e para a comprovação das quais, como se explica no Acórdão, estabelece um procedimento formal de averiguação próprio. Trata-se, portanto, de uma eficácia condicionada, na medida em que dependente da verificação de um conjunto, complexo e articulado, de condições, que devem ser atestadas no momento e pela forma a que, de acordo com a conjuga- ção do modelo médico de antecipação da morte não punível com um mecanismo de controlo ex ante baseado na intervenção de uma entidade pública, o Decreto sujeita a respetiva comprovação. As circunstâncias materiais aptas a converter o consentimento do titular do direito à vida em dirimente da responsabilidade penal a que continua sujeita a ablação da vida a pedido e o auxílio material ao suicídio são recortadas a partir da “situação de sofrimento intolerável” decorrente de “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou de doença incurável e fatal”. Comprovadas ambas as circunstâncias nos termos estabelecidos no Decreto, o legislador suprime a proibição penal a que de outro modo se encontraria sujeita a intervenção causal ou coadjuvante do médico orientador e demais profissionais de saúde e, concedendo total primazia à decisão tomada pelo doente, desde que “atual e reiterada, séria, livre e esclarecida”, permite a concretização, no momento, lugar e pelo modo por este escolhidos, da antecipação do fim da vida em ambiente controlado e próprio, possibilitando dessa forma o recurso à colaboração de terceiros por parte de quem, por força do carácter insuportável do sofrimento que carrega, reconheça naquela antecipação uma opção preferível à dor da sobrevivência na irreversibilidade das suas penosas e não aligeiráveis circunstâncias. A razão que explica a supressão, neste contexto, do mandamento jurídico-penal de não dar a morte em quaisquer circunstâncias constitui, a meu ver, o princípio da resposta à questão de saber se a renúncia à tutela penal da vida humana nas circunstâncias estabelecidas no Decreto, concretizada na regulação (e consequente legalização) da prática de antecipação do fim de vida no âmbito de um «procedimento administrativo auto- rizativo e de execução» instituído e superintendido pelo Estado, coloca o direito infraconstitucional, no seu funcionamento conjunto, aquém do limiar fixado pelo princípio da proibição da insuficiência. Se na génese da incriminação do homicídio a pedido da vítima e do auxílio material ao suicídio se encontra, como vimos, quer o acautelamento do risco de decisões precipitadas de fim de vida, quer o pró- prio compromisso com a defesa da vida da pessoa humana, no sentido atrás exposto, a comprovação de uma situação de sofrimento extremo em razão de uma condição clínica irreversível e radical não só consubstancia um fundamento legítimo para retirar plausibilidade à presunção legal de irreflexão e de falta de amadureci- mento subjetivo que subjaz a ambos os tipos – permitindo reconhecer na antecipação da morte o resultado de um exercício responsável da vontade autodeterminada do doente –, como constitui base suficiente para
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=