TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

94 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL redução das possibilidades de concretização da decisão de antecipação do seu termo que deriva da proibição penal de todo o tipo de intervenções consentidas de terceiros. Se o limite máximo colocado pelo direito à autodeterminação, enquanto expressão direta da digni- dade da pessoa humana, tem como primeira função, segundo vimos, vedar ao legislador uma compreensão transpersonalista do mandato constitucional de proteção da vida humana – legitimadora, em última instân- cia, da incriminação da própria tentativa de suicídio –, o limite mínimo da moldura de discricionariedade legislativa, que se traça diretamente a partir do artigo 24.º da Constituição, tem por efeito o afastamento da compreensão oposta. Isto é, da compreensão segundo a qual a decisão pela qual cada um opta por pôr termo à sua vida lhe pertence em termos de tal modo exclusivos, soberanos e absolutos que o Estado deverá pura e simplesmente abster-se de criar qualquer tipo de obstáculo ou condicionamento prático à sua concretização, em especial aqueles que derivam da limitação da liberdade de atuação de quem se ofereça para causar ou ajudar a causar a morte de outrem em face de um pedido livre, esclarecido e sério. Ao declarar que a vida humana é inviolável, a Constituição não só consagra o direito à vida com a impressividade correspondente à sua condição de «pressuposto fundante de todos os demais direitos fundamentais» (ponto 30. do Acórdão), como vincula o Estado ao compromisso permanente de o defender em termos que podem dizer-se avessos à opção por uma ordem jurídica que conferisse a cada membro da comunidade permissão para provocar ou colaborar na morte de qualquer outro, desde que capaz, com base na existência de um pedido sério, instante e expresso. Um compromisso que se funda, é certo, na proteção e promoção da vida humana como um bem, enquanto valor objetivo e princípio estruturante do Estado de direito, mas na base do qual derradeiramente se encontra a conceção da pessoa não apenas como um ser-aí – o eu isolado e solitário –, mas também como um ser-com-os-outros – alguém que, sendo filho(a), pai/mãe, irmão(ã), amigo(a) e ou companheiro(a), também existe e vive nos outros. É a partir desse compromisso, que impõe ao legislador a adoção de um «sistema legal de proteção orientado para a vida» e o inibe de se posicionar neutralmente perante esta, que se traça também, no domínio das autolesões e heterolesões consentidas, o limite mínimo da discricionariedade legislativa imposto pela proibição do défice ou da insuficiência. Nos pontos seguintes, procurarei explicar como, em minha opinião, estes dois limites, mínimo e máximo, se articulam – e, sobretudo, qual o juízo a que deverão conduzir – em face do regime de antecipa- ção da morte medicamente assistida não punível constante do Decreto. 3. Perguntar qual é o bem jurídico protegido através da incriminação do homicídio a pedido da vítima (artigo 134.º do Código Penal) e da ajuda material ao suicido (artigo 135.º do mesmo Código) é o mesmo que perguntar pela razão que determina a ineficácia justificativa do consentimento no âmbito dos crimes contra a vida: independentemente da sua firmeza, do seu grau de convicção ou do nível de reflexão que lhe esteja subjacente, o consentimento constitui, até hoje, uma condição sem qualquer tipo de projeção ou rele- vância no plano das dirimentes da responsabilidade pela lesão do direito à vida. A primeira razão para que assim seja prende-se com a objetiva impossibilidade de, mesmo através da exigência de um consentimento qualificado – isto é, aquele que se expressa na formulação de um pedido instante –, reconhecer na decisão de quem procura a colaboração de terceiros para concretizar a antecipação do fim da vida um grau de verdade, de resolução e de firmeza congruente com a irreversibilidade do resultado consentido. Sabendo-se que a decisão de pôr termo à vida é as mais das vezes determinada por uma condição psicologicamente relevante – a mais frequente das quais a depressão –, que compromete a capacidade para consentir na sua lesão ( Bundesverfassungsgericht , decisão de 26 de fevereiro de 2020, parágrafo 245), pode dizer-se que a incriminação tanto do homicídio a pedido da vítima, como do auxílio material ao suicídio, assentam, ainda que em diferente medida, na «presunção legal de precipitação e falta de “amadurecimento subjetivo”» por parte do respetivo titular (neste sentido, ainda que a propósito apenas do crime de homicídio a pedido da vítima, Manuel da Costa Andrade, “Comentário ao artigo 134.º”, § 15, p. 104, in Figueiredo Dias (dir.), Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012). Embora tal presunção seja mais forte no primeiro caso do que no segundo, ambos os tipos legais

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=