TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
93 acórdão n.º 123/21 o princípio da dignidade da pessoa humana pressupõe o reconhecimento de um espaço de liberdade decisória inerente à conceção da pessoa como sujeito intelectual e moralmente capaz, de que é expressão direta o direito à autodeterminação individual e à livre conformação da vida que a Constituição acolhe, enquanto projeção do direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade, no seu artigo 26.º. Direito cujo sentido é o de assegurar a cada indivíduo a faculdade de continuamente se autodesignar, realizando as suas próprias escolhas e traçando através delas o seu destino, e em cujo âmbito por isso se integra «o direito de uma pessoa decidir de que modo e em que momento a sua vida deve terminar, desde que esteja em condições de formar livremente a sua vontade a esse respeito e de agir em conformidade» (jurisprudência do TEDH citada no ponto 28 do Acórdão). 2. Ao afirmar que a vida humana é inviolável, o artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, vincula o Estado de uma dupla forma: negativamente, impondo-lhe uma proibição de agressão ou de ingerência; positiva- mente, exigindo dele a criação e manutenção dos pressupostos de facto e de direito necessários à defesa ou à satisfação do direito fundamental que lhe corresponde. Uma vez que a proclamação constitucional da inviolabilidade da vida humana compreende o direito a não ser morto tanto pelo Estado como pelos demais membros da comunidade, cada cidadão terá, frente ao Estado, o direito a que este proteja a sua vida perante intervenções arbitrárias de terceiros. O cumprimento do imperativo constitucional de tutela da vida humana vincula o Estado à realização de prestações tanto fácticas como normativas, nestas se incluindo a proteção através da edição de normas de direito penal ou da criação de normas de organização e de procedimento (Robert Alexy, Teoria dos Direitos Fundamentais, Tradução de Virgílio Afonso da Silva, Malheiros Editores, 2008, pp. 196 e segs. e 442). Embora a escolha do tipo de proteção que deve de ser em concreto realizada seja «algo que “em primeira linha”, “em grande medida” ou “em essência”, cabe ao legislador» ordinário ( idem , p. 463, referindo-se às formulações recorrentemente adotadas pelo Bundesverfassungsgerich t), a liberdade de conformação que lhe assiste é sempre exercida no interior de uma espécie de moldura cujo limite máximo é dado pela proibição do excesso de proteção – medido pelo nível de afetação a que o instrumento de proteção escolhido sujeita certo (outro) direito fundamental – e cujo limite mínimo corresponderá à proibição da proteção deficitária ou insuficiente. No domínio da proteção penal da vida humana perante formas de autolesão e de heterolesão consenti- das, o limite máximo correspondente à proibição do excesso é traçado a partir do direito à autodetermina- ção individual e à livre conformação da vida. A primeira função que tal limite desempenha é a de vedar ao legislador uma compreensão de tal forma radical do seu mandato constitucional de proteção e promoção da vida humana, que pudesse originar a eliminação de qualquer espaço para o exercício da liberdade e da capa- cidade de autodeterminação individual dos respetivos titulares ou, como se afirma no Acórdão, conduzir ao esmagamento da «autonomia de cada ser humano para tomar e concretizar as decisões mais centrais da sua própria existência». Dele decorre para o legislador a impossibilidade do recurso a mecanismos de promoção e proteção a um tal ponto orientados para a defesa da vida humana em oposição à vontade autodetermi- nada do sujeito que a titula que acabem não só por desligar a vida protegida da proteção do sujeito que é seu titular, como ainda, na relação que estabelecem entre aquela e este, por converter ou reduzir a pessoa a um «instrumento para a preservação da vida como valor abstrato» (Tribunal Constitucional da Colômbia, Sentencia C-239/97). A segunda função desempenhada pelo limite máximo situa-se no plano da intervenção causal ou concorrente de terceiros no processo de concretização da decisão de antecipação da morte. Se o direito à autodeterminação inerente à condição da pessoa como sujeito moral e autónomo é contrário à ideia de que cada indivíduo se encontra obrigado a aguardar resignadamente pelo sobrevir natural do seu fim, o limite que a partir dele se traça não só exclui a possibilidade de punição dos atos de renúncia praticados pelo próprio titular – ao qual assiste o «indeclinável direito de dar à sua vida o destino que quiser, como e quando quiser» (Jorge de Figueiredo Dias, “A ‘ajuda à morte’: uma consideração jurídico-penal” in Revista de Legisla- ção e de Jurisprudência , n.º 137.º, Ano 2007-2008, n.º 3949 (março-abril de 2008), pp. 202 e segs. , p. 205) –, como abre ainda espaço ao reconhecimento de situações em que, ao menos por estar em causa um efetivo direito a morrer com dignidade, a proteção da vida humana não poderá mais efetivar-se através do nível de
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