TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
92 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL DECLARAÇÃO DE VOTO Votei o presente Acórdão essencialmente pelas razões seguintes: 1. Para responder à questão de saber se o regime de antecipação da morte medicamente assistida não punível estabelecido no Decreto é ou não compatível com o artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, tomado para o efeito como critério-medida da «amplitude da liberdade de limitação do direito à vida, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana», a primeira premissa de que parto baseia-se no princípio da unidade da Constituição. Isto é, no entendimento segundo o qual, representando a Cons- tituição uma ordenação unitária da vida política e social de uma determinada comunidade estadual, cada uma das suas normas deve ser encarada, não exclusivamente a partir de si mesma, destacada da unidade em que se inscreve ou nela isolada, mas enquanto parte integrante de um conjunto de elementos em interação e dependência recíprocas, de cuja atuação global deriva – e só dela pode derivar – a concreta conformação da coletividade que é dada (e assegurada) pela ordem jurídico-constitucional (neste sentido, Konrad Hesse, Escritos de Derecho Constitucional (Selección), Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1983, pp. 18 e 48). A segunda premissa assenta na ideia de que a Constituição, sendo embora uma unidade, está longe de ser uma unidade qualquer. É uma unidade que, expressando um pacto de vida comum entre os membros da comunidade, se baseia no princípio da dignidade da pessoa humana, sendo este o referente axiológico que relaciona e congrega, enquanto partes do todo, os elementos que integram o conjunto, conferindo-lhes um sentido teleológico próprio e unificador. Sentido que, assentando no respeito, não apenas pela dignidade inerente à condição que exprime a pertença à espécie humana, mas ainda (e decisivamente) pela dignidade humana do ser-pessoa, tem, numa sociedade democrática e aberta, uma propensão necessariamente abran- gente e inclusiva, exprimindo um «consenso constitucional em que as várias correntes e convenções próprias de um pluralismo razoável do nosso tempo se possam rever» (Jorge Reis Novais, A dignidade da Pessoa Humana , Volume I., 2015, Almedina, p. 25). A terceira premissa – que constitui, na verdade, uma decorrência lógica das duas anteriores – prende-se com a função que o princípio da dignidade da pessoa humana desempenha na interpretação das disposições constitucionais. Na medida em que constitui o elemento em torno do qual a unidade se compõe e agrega, o princípio da dignidade da pessoa humana intervém nessa interpretação: i) como antecedente (ou priu s), no sentido em que a interpretação de qualquer norma constitucional deve ser sempre orientada para a máxima realização do seu todo e este baseia-se na dignidade da pessoa humana; e ii) como consequente (ou posterius ), no sentido em que, se a unidade axiológica da Constituição é dada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, é através da interpretação de cada disposição constitucional como elemento integrante dessa uni- dade, na sua relação de interdependência com os demais, que o princípio da dignidade da pessoa humana se revela, materializa e obtém concretização. Relativamente ao problema central para que remete o pedido, as três premissas expostas permitem alcançar a seguinte primeira conclusão: sem prejuízo da especial força normativa inerente à proclamação de que a «vida humana é inviolável», o n.º 1 do artigo 24.º da Constituição não pode ser isoladamente interpretado, destacado e segregado da unidade em que se insere, de ummodo tal que naquela fórmula deva procurar-se (e possa encon- trar-se), sobretudo com apoio em argumentos extraídos do respeito devido pela dignidade da pessoa humana, tanto o princípio como o fim da resposta à questão de saber se a ordem jurídico-constitucional admite ou proscreve qualquer regime de antecipação da morte medicamente assistida não punível, designadamente aquele que se encontra previsto e explicitado no Decreto. Embora pressuponha, desde logo no plano ontológico, a inviolabilidade da vida humana que lhe dá suporte, a dignidade do ser-pessoa, na exata medida em que per- manece indissociável da conceção do indivíduo como sujeito moral e autónomo, não se reduz ou esgota nela, designadamente ao ponto de poder amparar uma resposta de tipo invariavelmente binário ao problema da con- formidade constitucional da renúncia à tutela penal da vida humana perante quaisquer formas de autolesão e de heterolesão consentidas. Assente na autonomia ética e no valor intrínseco da pessoa como fim em si mesma,
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