TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
91 acórdão n.º 123/21 “[…] respeito pela autonomia, mas também preocupação em face da vulnerabilidade […]”[38]. Ora, sendo a manifestação de uma decisão de ser sujeito a um procedimento de antecipação da morte medi- camente assistida inseparável dos efeitos das condições médicas (de um ‘prognóstico da situação clínica’, nas palavras do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto) que legalmente enquadram esse pedido – aqui, seguramente, “[…] o medo da dependência e da perda de controle, da incontinência e da demência, enfim, do medo da deficiência [ – ] [e]mbora isso seja expresso como um desejo de ‘morrer com dignidade’, não deixa de implicar que viver em certas condições é, per se, uma indignidade”[39]. É este, com efeito, o sinal que o Estado a todos dá. Ora, o plano da decisão individual em que esta questão se suscita expressa motivações subjetivas onde intervêm as múltiplas razões, muitas delas fonte de inaceitável descaso da ideia de inviolabilidade da vida humana. A tudo isso soma-se, porém, o sinal que o comportamento do Estado não deixa de expressar relati- vamente à condição deficiente, à vulnerabilidade que ela acarreta e à proteção especial que ela exige. Dir-se-á que isso é matéria de outra legislação, porventura responsabilidade “de outro departamento”. Porém, o que fica da opção aqui em causa é precisamente esse poderoso sinal que se dá, criando uma classe de pessoas cuja condição física e psíquica depauperada as torna elegíveis num quadro de atuação do Estado que lhes faculta a opção da própria morte. Não é, aliás, de afastar a inclusão daquelas pessoas, desde logo aquelas “com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal”, na noção de pessoas com ‘deficiência’, sendo aquelas elegíveis para antecipar a sua própria morte [40]. Vale esta situação, pois, por via do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV, também, para além da ofensa direta ao artigo 24.º, n.º 1 da CRP, como desvirtuamento do princípio da dignidade da pessoa humana, por referência aos artigos 1.º, n.º 1, e 13.º, n.º 1, da CRP. 2.5. A admissão da eutanásia – e particularmente a admissão nestes termos – conduz inelutavelmente ao seguinte encadeamento de asserções caraterizadoras de um novo paradigma de “convivência” com o princípio da inviolabilidade da vida humana decorrente do artigo 24.º, n.º 1, da CRP: (A) O direito à vida inclui o direito de não ser morto; (B) Esse direito envolve, todavia, enquanto opções protegidas do próprio titular, a opção de viver e a opção de morrer, com as quais (no caso da segunda opção, nas condições fixadas pelo Estado) os outros não podem legitimamente interferir; (C) Assim, se alguém decide morrer, está a renunciar, no quadro das suas opções válidas, ao direito à vida. E, ao renunciar a esse seu direito – este é o problema central criado pelo Decreto n.º 109/XIV –, está a libertar outros (especificamente está a libertar o Estado) do dever de não o matar. E o Estado está a afastar a proibição/a punibilidade de matar nesse caso [41]. Afastando-se decisivamente daquele paradigma, entendem os subscritores deste voto existirem matérias que estão “fora do alcance de maiorias” ( beyond the reach of majorities ) [42], sendo esse o caso da legalização da eutanásia, não dispondo o legislador, como antes dissemos, de credencial constitucional para esse efeito. Daí considerarmos que o artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV viola o artigo 24.º, n.º 1, da Constitui- ção da República Portuguesa (e também consideramos que o viola, nos termos indicados em 2.4., supra , em conjugação com os seus artigos 1.º, e 13.º, n.º 1). Neste aspeto divergimos, como referimos no ponto 1.1.2, do percurso argumentativo do Acórdão. – Maria José Rangel de Mesquita – Maria de Fátima Mata-Mouros – Lino Rodrigues Ribeiro – José António Teles Pereira. [38] Jorge Miranda, António Cortês, anotando o artigo 1.º, in Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, 2.ª edição, cit., p. 65. [39] David Albert Jones, “Is Dignity Language Useful in Bioethical Discussion of Assisted Suicide and Abortion?”, in Understanding Human Dignity (Ed. Christopher McCrudden), Oxford University Press, Oxford, 2014, p. 531. [40] “[…] aquelas que têm incapacidades duradouras físicas, intelectuais ou sensoriais, que em interação com várias barreiras podem impedir a sua plena e efetiva partici- pação na sociedade em condições de igualdade com os outros […]” – cfr. artigo 1.º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 13 de Dezembro de 2006 (aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 30 de julho e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/09, de 30 de julho). [41] Adaptámos aqui a formulação do problema por J. David Vellman, Beyond Price …, cit., p. 28. [42] Tomando de empréstimo a expressão que, 1943, o Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos, empregou na decisão West Virginia State Board of Education v. Barnett [319 U.S. 624 (1943)], relatada pelo Juiz Robert Jackson, num dos chamados flag-salute cases , ao afirmar que “A finalidade de uma Declaração de Direitos [Bill of Rights] foi retirar certas matérias das vicissitudes da controvérsia política, e colocá-las fora do alcance das maiorias ... e consagrar os mesmos [Direitos] como princípios jurídicos a serem aplicados pelos tribunais. [...]”.
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