TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

90 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL de grande vulnerabilidade física e psíquica – em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal –, em nada nos garante a presença, para quem encare as coisas nesses termos, da “vantagem” de uma escolha livre – do respeito que é devido a uma escolha livre – permitindo uma relativização tão expressiva – ao ponto da intolerabilidade – da inviolabilidade da vida humana, conduzindo, enfim, à quebra da barreira protetiva erigida pelo o artigo 24.º da CRP em torno do valor da vida. O problema é que essa relativização da vida humana – a diminuição do valor intrínseco desta – atua frequentemente de forma insidiosa, criando, em situações de grande dependência, uma espécie de ónus subliminar de justificar a própria existência – “[o] ónus de justificar a própria existência pode tornar a exis- tência insuportável e, consequentemente ‘injustificável’.“[35]. Ora, e é este o problema central com o qual nos confronta a existência de uma regulamentação legal da morte a pedido, “[…] oferecer a opção de morrer a alguém [estamos a falar de pessoas gravemente doentes e dependentes] pode corresponder a dar-lhe novas razões para morrer.”[36]. Aliás, olhando para o procedimento criado pelo Decreto n.º 109/XIV, não deixa de ser pertinente a interrogação: “[q]uem pode saber ao certo se o pedido, mesmo formulado por escrito [da antecipação da morte], é ou não o resultado de uma aceitação resignada de um desejo pressentido nos fami- liares e noutras pessoas próximas do paciente? Como é possível ter certeza de que a solicitação não resulta de uma depressão remediável ou se baseia numa visão irreal do diagnóstico ou do prognóstico? Todas estas questões podem surgir nestas situações [ – vamos confiar que os intervenientes serão exatos nas respostas que derem ao longo do processo na perceção da realidade – ], importando não esquecer que a morte de um paciente será determinada pelas respostas.”[37]. Mas não são os cuidados paliativos (artigo 6.º da Lei n.º 31/2018, de 18 de julho) a resposta adequada a estas situações, e não uma mera hipótese de escolha (artigo 3.º, n.º 5, do Decreto) numa espécie de catálogo em que a opção do Estado organizar a morte a pedido aparece destacada? E o mesmo não sucederá com a sedação paliativa (artigo 8.º da Lei n.º 31/2018)? É convicção firme dos signatários da presente declaração, alicerçada no próprio direito à vida e nos deveres de proteção que dele decorrerem, que a resposta a qualquer destas interrogações só pode ser positiva. Assim como tal resposta positiva sempre se afiguraria, numa hipo- tética ótica de admissibilidade de conflito de direitos ou de ponderação de diferentes valores – que a indis- ponibilidade da vida humana e do correspondente direito tomado como um todo, em qualquer caso, não suscita ou consente –, a única solução de equilíbrio que, precavendo a eliminação irreversível do bem jurídico em causa, colocaria ainda a ênfase na vida, aliviando a dor e o sofrimento, físico ou psicológico, ainda que eventualmente sobrevenha um resultado desvalioso – o evento natural da morte, mas não antecipada. Em qualquer caso, o que nunca configurará uma alternativa – desde logo porque para tanto não dispõe o legisla- dor de qualquer credencial constitucionalmente válida – é a autorização ao Estado para fixar critérios, ditos médicos, da medida em que uma vida atingiu um ponto suficiente de deterioração física que torne “razoá- vel” atender um pedido de ser morto formulado pelo próprio, conduzindo à sua irreversível eliminação. Se isto corresponde a um novo paradigma da liberdade e da autonomia individual, não deixa de ser paradoxal que ele se manifeste nesta espécie de apoteose do paternalismo do Estado, criado e procedimentalizado pelo Decreto n.º 109/XIV. 2.4. Neste contexto – que é o da existência de um enquadramento legal da morte a pedido, referido a um grupo delimitado por critérios de elegibilidade fixados nos termos decorrentes do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV – tem sentido, ademais, convocar o plano referencial da dignidade humana (artigo 1.º da CRP), como princípio-guia conducente a outros valores constitucionais. Exige-se nesse plano, [35] J. David Vellman, Beyond Price …, cit., p. 13. [36] Ibidem , p. 15. [37] Sissela Bok, “Euthanasia”, in Euthanasia and Physician-Assisted Suicide, Gerald Dworkin, R. G. Frey, Sissela Bok, Cambridge University Press, Cambridge, 1998, p. 109.

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