TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
88 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL (...), valendo essa asserção (são compatibilizáveis com o princípio da inviolabilidade da vida humana), para nos centrarmos na temática que nos ocupa, decisões médicas guiadas pelo princípio do bem-fazer, de não pro- longamento artificial da vida através de terapias fúteis; o encarniçamento terapêutico, contra toda a esperança de uma melhoria real da situação do paciente; o respeito pela autonomia deste expressa na vontade – desde logo através das diretivas antecipadas de vontade em matéria de cuidados de saúde, designadamente sob a forma de testamento vital (cfr. artigo 1.º da Lei n.º 25/2012, de 16 de julho) –, de não ser sujeito a determinadas terapias, ou de determinar a sua suspensão, não obstante serem necessárias ao prolongar da vida (tais situações projetam o respeito pela autonomia do doente quanto à modelação decisória dos atos médicos [25] a que pretende ser sujeito [26], acomodam até ao limite possível os valores que a este respeito se impõem ao legislador [27]); a adoção de terapias antagonistas da dor e do sofrimento, que tenham como efeito (secundário, indireto, não visado mas a que não se pode obviar) o encurtar da vida do paciente, valendo nestes casos a chamada Doutrina do Duplo Efeito, distinguindo entre procurar causar um resultado desvalioso, e a previsão da ocorrência deste, como eventualidade, quando essa ação é só guiada pela procura do efeito valioso [28]. 2.2.3. Num outro plano, algumas vezes convocado a este debate, ocorre sublinhar que a não punição do suicídio (do suicídio tentado) não aporta argumentos cogentes quanto à legalização da eutanásia (ou do suicídio assistido), sendo intuitiva a diferença radical que vai da intranscendência social do ato de quem põe termo à sua vida, e a passagem para o nível da organização social. Como afirma Gustavo Zagrebelsky (antigo Juiz e Presi- dente do Tribunal Constitucional italiano), em entrevista realizada em 2011[29]:“[s]e alguém se mata, isso é considerado um facto, ummero facto que […] permanece dentro da sua esfera jurídica pessoal. Porém, entrando em jogo outra pessoa, isso transforma a situação num facto social, mesmo que isso envolva apenas duas pessoas: quem pede para morrer e quem a ajuda. Mais ainda se entrar nesse processo uma organização, seja ela pública ou privada, como na Suíça ou na Holanda. […] Se a maioria dos casos de suicídio deriva da injustiça, da depressão ou da solidão, o suicídio, como facto social, levanta uma outra questão. A sociedade pode dizer, está bem, desa- parece do caminho [ va bene, togliti di mezzo ], e nós até te ajudamos a fazê-lo? Não é muito fácil? Mas o dever do Estado não é o contrário: dar esperança a todos? O primeiro direito de cada pessoa é poder viver uma vida com sentido, correspondendo à sociedade o dever de criar as condições. […] Uma coisa é o suicídio como facto individual; outra coisa é o suicídio socialmente organizado. A sociedade, com as suas estruturas, tem o dever de cuidar, se possível; se não for possível, tem, pelo menos, o dever de aliviar o sofrimento. […]”[30]. 2.3. Encontramos, pois, no fulcro da opção legislativa instituída pelo Decreto n.º 109/XIV, a criação de um procedimento geral de enquadramento de pretensões de morte medicamente assistida, em função do [25] Cfr. art.º 6.º, n.º 1, do Regulamento n.º 698/2019 da Ordem dos Médicos, que define os atos próprios dos médicos (DR, 2.ª Série, n.º 170, de 5 de setembro de 2019). [26] “A provocação direta da morte nunca poderá ser encarada ou construída como uma ‘opção terapêutica’ para reagir ao sofrimento” (George P. Smith, II, Palliative Care and End-of-Life Decisions , Palgrave Macmillan, Nova York, 2013, p. 23). [27] Ou seja, na relação entre o valor vida e o valor autonomia, não fazem prevalecer a autodeterminação em detrimento da vida, não dando lugar à inversão dos valores constitucionais que o acolhimento da eutanásia necessariamente implica. [28] David Edmonds, Would You Kill the Fat Man?..., cit., pp. 28-34. [29] “Il diritto di morire non esiste”, Il Fatto Quotidiano di Silvia Truzzi, 14 Dicembre 2011, acessível na ligação seguint e: https://www.ilfattoquotidiano.it/2011/12/14/ piazza-grande-il-diritto-di-morire-non-esiste/. [30] Em novembro de 2018, já no quadro do debate aberto em Itália pelo caso Cappato , o mesmo Juiz, em debate oral realizado a 25 desse mês (“A chi appartiene la tua vita? L’eutanasia come diritto umano”, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=3riFXa3QDwl) , afirmava (trata-se de transcrição de linguagem oral): “[…] Se querem a minha opinião, eu não sou favorável ao facto de o Estado... (o Estado nasceu historicamente para proteger a vida dos cidadãos: o Estado moderno, o Estado soberano, existe, diz-se classicamente, para defender os bens últimos dos cidadãos: a propriedade e a vida). Assim, eu penso que o Estado deve, antes de mais, fazer tudo o que seja possível para que um indivíduo não se encontre na situação de querer tomar uma decisão ultima deste género. Isto vale, em especial para o sofrimento moral. Porque, depois, se se dissesse que havia um direito, o que é que deveria acontecer? As nossas estruturas hospi- talares deveriam fornecer as prestações para se exercer este direito, e assim despender dinheiro ..., subtraindo os recursos necessários para as suas utilizações que deveriam ser primárias, prioritárias, isto é, as destinadas à cura, e ao apoio, também psicológico, das pessoas. Direi isto, acrescentando, todavia, que a solução baseada na compaixão, a que se pratica normalmente nas nossas estruturas operativas, deve ser aquela favorecida. Favorecida, com um único limite: evitar que a morte procurada seja determinada por interesses patrimoniais de potenciais herdeiros, ou seja, deve haver um cordão sanitário que exclua a especulação sobre estas coisas. Mas francamente, não sei se é um pensamento particularmente rigoroso de um ponto de vista jurídico. Para mim, se o Estado organiza as suas estruturas sanitárias públicas para determinar a morte, naturalmente que uma vez que se dá este passo, também se tem de permitir as estruturas privadas, por uma óbvia razão de igualdade, estruturas convencionadas, e por isso sobre esta faceta da morte procurada poder-se-ia construir um sistema substancialmente comercial. Vejam quantas dificuldades. […]”.
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