TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

87 acórdão n.º 123/21 a priori , respostas em concreto que comportem algum grau de generalização de procedimentos ancorados em fortes intuições morais que sejam congruentes com o imperativo ético de não matar, e com o grau superior de qualificação da inviolabilidade da vida humana, quando colocados (quando testados) em situações de tensão que postulem ou exijam escolhas dilemáticas com algum grau de interferência com esse valor cimeiro. O ponto central destas questões, e da resposta que a elas fornece uma ética de respeito pelo valor intrínseco da vida humana – o que, enfim, distingue tais situações daquelas em que a resposta é a eutanásia –, reside na diferenciação, eticamente significativa, entre o ato de matar e o ato que envolva deixar morrer, fora de qualquer atuação intencionalmente dirigida a esse resultado, num quadro de luta contra o sofrimento físico. 2.2.1. Com efeito, ser a vida humana inviolável não exclui, desde logo, a legítima defesa (como causa de exclusão da ilicitude) cujo exercício legítimo pode confrontar o valor vida humana, “[…] como meio neces- sário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro” [artigos 31.º, n. os 1 e 2, alínea a) , e 32.º do Código Penal], sendo que o exercício desta nem estará limitado por uma exigência de proporcionalidade relativa aos bens sacrificados, com uma substancial relativização dessa exigência contida no trecho final do artigo 337.º do Código Civil [23]. Pressupõe a legítima defesa, todavia, uma situação atual de “ingerência” de natureza qualificada (uma agressão) interferente com uma situação de incolumidade tutelada pelo Direito, que não origina qualquer paralelo significativo, quanto à essência do valor vida humana, com a problemática da eutanásia. Não geram, pois, as duas situações, argumentos válidos de comparação, não pressupondo qualquer identidade de razão, que não assente numa construção totalmente artificial. Aliás, situando as coisas no plano da adjetivação, a consideração da legítima defesa projeta-se fundamentalmente em apreciações a posteriori . 2.2.2. Da mesma forma, também não fornecem à opção legislativa subjacente ao Decreto n.º 109/XIV qualquer argumento de respaldo, referido à justificação da construção de restrições à inviolabilidade da vida humana nos termos em que esta é afirmada no artigo 24.º, n.º 1 da CRP, situações específicas que postulem, ou exijam mesmo, escolhas – seguramente dilemáticas – interferentes com o valor vida humana. A atividade médica, como o tempo presente se encarregou de demonstrar à saciedade, gera situações desse tipo, e não podemos dizer que o sentido poderoso da afirmação da inviolabilidade da vida humana – da exaltação do valor desta – esteja, em tais casos especiais, a ser postergado... “[…] São decisões muito objetivas. Claro que se tivéssemos recursos ilimitados de cuidados intensivos, se calhar tínhamos critérios mais amplos de admissão do que numa situação em que há muito menos recursos do que can- didatos. Aí, temos de ser mais selectivos. De qualquer modo, mesmo que tivesse cem camas de cuidados intensivos livres, e houvesse um doente com imensas dependências, num estado quase terminal da sua vida, era má prática, era obstinação terapêutica, admiti-lo em cuidados intensivos. Uma coisa é prolongar a vida, que é o que fazemos. Outra é prolongar a morte. Para um doente que está a chegar ao fim da vida, um ventilador prolonga-lhe, não a vida, mas a morte. Está numa dependência total. Não morre hoje, mas morre daqui a 15 dias, totalmente depen- dente. [...]” [entrevista com o Dr. António Sarmento, Diretor do Serviço de infecciologia do Hospital de S. João][24]. [23] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, cit., pp. 511-514, e António Menezes Cordeiro, anotando o artigo 337.º do CC, in Código Civil Comentado , I – Parte Geral (coord. António Menezes Cordeiro), Almedina, Coimbra, 2020, pp. 958-960 e 963-965. [24] E, ainda, com menção à eutanásia: “O que mais o perturba? É que sei que vai morrer gente e a nós médicos custa-nos sempre imenso. Nunca nos habituamos a ver morrer os doentes. Nunca. Nunca. Fomos formatados para a vida. Não para a morte. Ver morrer pessoas é a grande carga de tudo isto. Por muitos anos de médico que tenhamos, nunca nos habituamos. Nunca. E nos cuidados intensivos a taxa de doentes que nos morrem no dia a dia é muito grande. Mas nunca me habituei. Nem nenhum médico se habitua. É por isso que quando se discute a questão da eutanásia, nós não estamos formatados para isso. Estamos formatados para aliviar o sofrimento, prolongar a vida quando é possível prolongar. Quando não é possível, devemos proporcionar uma morte sem sofrimento, ou com o menor sofrimento possível. O que me perturba é os doentes que vão morrer.” Expresso Revista de 27/12/2020, p. 56, https://expresso.pt/coronavirus/2020-12-27-O-coronavirus-esta-a-assustar-mais-do-que-a-sida- -a-entrevista-ao-primeiro-vacinado-quando-a-covid-ainda-estava-no-comeco.

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