TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
86 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL A vida humana, naquela dimensão objetiva, enquanto valor cuja proteção é (não só consagrada em função da vontade individual e interesses próprios do seu titular mas também) consagrada em função de valores comu- nitários que lhe estão associados em razão da sua natureza de bem supremo da comunidade – confirmada pela insusceptibilidade de suspensão – convoca e legitima, quanto ao Estado, deveres de respeito e de proteção – de cada vida e na sua articulação com as demais – mas tão-só da própria vida, não operando aqueles quanto – não permitindo – [a]o direito à morte. Como afirmam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “A Constituição não reconhece qualquer «vida sem valor de vida», nem garante decisões sobre a própria vida.”[17]. O texto constitucional, quanto à insusceptibilidade de suspensão do direito à vida (de afetação pela declaração do estado de sítio ou do estado de emergência, como o que vigora no presente) não deixa de transparecer a influência e a axiologia valorativa do Direito internacional, em que, como sublinha a doutrina, o direito à vida já integra o “muito reduzido” “núcleo duro dos direitos do homem” comum a três das prin- cipais convenções em matéria de proteção de direitos humanos (todas anteriores à Constituição de 1976), enquanto “direitos intangíveis”, insuscetíveis de derrogação (ou suspensão) e suscetíveis de elevação à posição de normas imperativas de direito internacional [18],[19]. 2.2. Esta muito peculiar feição do direito à vida, traduzida em “[apresentar-se] em regra como um direito de tudo ou nada – no sentido de que não são concebíveis ataques parcelares à vida sem perda dessa mesma vida […]”, torna-o, pela sua própria natureza, “[…] avesso a operações de concordância prática e cujo conteúdo tende a coincidir com o seu conteúdo essencial […]”[20]. Ora, prestar-se muito pouco – ser intrinsecamente avesso – a operações de relativização do seu conteúdo, reduz fortemente a respetiva suscetibilidade de acomodação a outros valores (que não oponham o seu próprio valor intrínseco a um mesmo outro valor [21]). Daí que o dever de respeito que quanto a ele a todos é imposto – e ao legislador muito em particular é exigido – apresente uma expressiva natural propensão à absolutização, gerando quanto a esta caraterística de alguns direitos, pese embora a ela não corresponder exatamente, uma grande proximidade. É que, não existindo a este respeito possibilidade de limitação, constitucionalmente expressa ou autorizada, a viabilidade de um espaço – de uma estreita e excecionalíssima margem – de ponderação radicar-se-á, enquanto regra geral, numa apreciação a posteriori de concretas situações [22], podendo ser quando muito, consideradas, todavia, não obstante essa tendencial “imunidade” à apreciação [17] CRP. Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª edição, cit., p. 450. [18] Frédéric Sudre, Laure Milano, Hélène Surrel, Droit européen et international des droits de l’homme, 14.ª edição, PUF, Paris, 2019, p. 195 e p. 196 – cfr., quanto ao direito à vida, cronologicamente, os art. os 2.º e 15.º, n.º 2, da Convenção Europeia para a Salvaguarda dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 4 de novembro de 1950; os art. os 6.º e 4.º, n.º 2, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 16 de dezembro de 1966; e, ainda, os art. os 4.º e 27.º, n.º 2, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969. [19] Acresce, também numa ótica internacionalista, que o direito à vida integrava já o «mínimo humanitário garantido» pelo artigo 3.º comum às quatro Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949 que, segundo o Tribunal Internacional de Justiça, contém regras que correspondem a «considerações elementares de humanidade» [caso Estreito de Corfu ( Reino Unido c. Albânia ), Mérito, 9.4.1949, Recueil , 1949, p. 22, retomado no parágrafo 218 (e parágrafo 215) do caso Atividades Militares e Paramilitares na Nicarágua ( Nicarágua c. E.U.A ), Mérito, 27.6.1986 Recueil, 1986]. [20] Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada , Vol. I, 2.ª edição, cit., p. 366. [21] “Por vezes é impossível salvar toda a gente. Os políticos têm que tomar decisões que implicam questões de vida ou de morte. Omesmo sucede com os responsáveis por estru- turas de saúde. Os recursos nessa área não são ilimitados. Sempre que uma estrutura de saúde é confrontada com a escolha entre alocar fundos à aquisição de um medicamento que se estima salvará X vidas, ou alocá-los a outro que salvará Y, estão os seus responsáveis a ser confrontados, com efeito, com variações, não ficcionadas, do chamado «trolley problem» […]” (David Edmonds, Would You Kill the Fat Man? The Trolley Problem andWhat Your Answer Tells Us about Right andWrong, Princeton University Press, Princeton, Oxford, 2014, p. 11; correspondem os ditos «trolley problems» a cenários experimentais de ética aplicada, envolvendo a ficção de dilemas éticos estilizados, que pressupõem, na sua forma mais simples, o sacrifício, num hipotético ramal de linha de comboio, de uma pessoa para salvar um número maior, sendo alguém confrontado com a possibilidade de desviar o comboio para um ou outro ramal, “salvando” ou “condenando” alguém: “[n]a verdade, para um observador exterior, estes curiosos incidentes com comboios podem parecer uma brincadeira inofensiva – uma espécie de palavras cruzadas para ocupantes de longa duração da ‘Torre de Marfim’. Porém, na sua verdadeira essência, tratam da questão de saber o que está certo e o que está errado e qual deve ser o nosso comportamento. E o que é que pode ser mais importante que isso?” – ibidem , p. 12). [22] O que corresponde, quanto à temática aqui em causa, ao caminho apontado por Jorge de Figueiredo Dias: “[…] nos casos – que a medicina afirma serem hoje pouco frequentes – em que o mortalmente enfermo manifeste a sua vontade séria e esclarecida (ou ela se deva presumir, quando aquela manifestação não seja possível) de que ponham termo à sua vida, um acompanhamento compreensivo e humano da morte, aliado a uma terapia da dor tão eficiente quanto possível (mesmo que atinja a natureza de ajuda à morte aiva indireta) conforma uma atuação que, devendo ainda ser considerada como ‘tratamento’, cabe precipuamente na função do médico e tem vantagens de toda a ordem sobre a permissão jurídica, ainda que sob os mais rigorosos pressupostos procedimentais, da ajuda à morte ativa direta. […] O que pode, tendo-se isto em conta, ficar ainda para a permissão, ainda que absolutamente excepcional, da ajuda à morte ativa direta at no plano ‘de lege ferenda ’? Em nossa opinião […] que ao preceito sobre o homicídio a pedido se acrescentasse um novo número com a seguinte redação: ‘O tribunal pode isentar de pena quando a morte servir para pôr termo a um estado de sofrimento insuportável para o atingido, que não pode ser eliminado ou atenuado por outras medidas’.” (“Nótula antes do artigo 131.º”, Comentário Conimbricense do Código Penal, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Tomo I, Parte Especial, 2.ª edição, cit., pp. 33-34, ênfase no original; texto também publicado na Revista de Legislação e de Jurisprudência – “A ‘ajuda à morte’: uma consideração jurídico-penal” –, Ano 137, Março-Abril, 2008, n.º 3949, p. 215).
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