TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

85 acórdão n.º 123/21 pela afirmação incondicionada contida no n.º 2 – “[e]m caso algum haverá pena de morte.” –, procuran- do-se através deste, algo mais do que a tradicional referência, nas Constituições portuguesas desde 1911, à proibição da pena de morte, afastar operações de redução da força da afirmação contida no n.º 1, através da projeção do que, a par da guerra, historicamente identificava, no pensamento judaico-cristão, uma exceção ao imperativo moral de não matar [10]. O que ora interessa ter presente é que a formulação do que viria a corresponder ao artigo 24.º, n.º 1, apre- sentou uma originalidade apelativa, que recolheu o voto unânime dos constituintes [11] , gerando uma fórmula cuja força nos permite referir a afirmação de inviolabilidade como particularmente qualificada – porventura situada, se alguma referência foi procurada na Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, algures a meio caminho entre a intangibilidade ( unantastbar ) da dignidade da pessoa humana[12] e a inviolabilidade ( unverletzlich ) afirmada no artigo 2.º (2) desse texto constitucional [13]. Daí que, uma maior proximidade ao legislador histórico (ao contexto histórico da construção dessa disposição) tenha conduzido J. J. Gomes Cano- tilho e Vital Moreira, na 1.ª edição (1978) da Constituição anotada, à afirmação de uma natureza absoluta da proteção do direito à vida: “[o] valor do direito à vida e a natureza absoluta da proteção constitucional traduz-se no próprio facto de se impor mesmo perante a suspensão constitucional dos direitos fundamentais, em caso de estado de sítio ou de estado de emergência […]”[14]. E continue, na edição mais recente da Obra, a suportar a caraterização do direito à vida como “[n]ão se [tratando] apenas de um prius lógico […]”, sendo antes, “[…] material e valorativamente[,] o ‘bem’ (localiza-se, logo, em termos ontológicos no ter e ser vida, e não apenas no plano ético-deontológico do valor ou no plano jurídico axiológico dos princípios) mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto. Precisamente por isso é que o direito à vida coloca problemas jurídicos de decisiva relevância nas comunidades humanas.”[15]. E, enfim, essa mesma especial qualificação do artigo 24.º é sublinhada por Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva: “[a] Constituição portuguesa não se limita, ao contrário de outros textos fundamentais e da própria DUDH, a dizer que ‘todos os homens têm direito à vida’, afirmando antes, numa fórmula normativa muito mais forte e expressiva, que ‘a vida humana é inviolável’ [ênfase no original]. O artigo 24.º desempenha, entre os direitos fundamentais, um papel absolutamente ímpar. Membro do ‘clube restrito’ dos direitos insusceptíveis de suspensão (n.º 6 do artigo 19.º), o direito à vida surge consagrado […] não apenas na sua dimensão puramente subjetiva, como primeiro dos direitos fundamentais – mais do que um direito, liber- dade e garantia, ele constitui o ‘pressuposto fundante’ de todos os demais direitos fundamentais –, mas como valor objetivo e como princípio estruturante de um Estado de Direito alicerçado na dignidade da pessoa humana (artigo 1.º)”[16]. [10] Ao mandamento “não matarás” consagrado no Livro do Êxodo (20:13) e repetido no Livro do Deuteronómio (5:17) (cfr. Nahum M. Sarna, The JPS Torah Commen- tary, Exodus, The Jewish Publication Society, Philadelphia, Jerusalem, 1991, p. 113; Jeffrey H. Tigay, The JPS Torah Commentary, Deuteronomy, The Jewish Publication Society, Philadelphia, Jerusalem, 1996, pp. 70-71; “The Christian Judge and the Taint of Blood: The Theology of Killing in War and Law, James Q. Whitman, the Origins of Reasonable Doubt. Theological Roots of the Criminal Trial, Yale University Press, New Haven, Londres, 2008, pp. 28-49). Permanece a pena de morte, para quem a aceite, como um paradoxo relativamente à inviolabilidade da vida humana [veja-se a “complexa” tentativa de afastamento desse paradoxo empreendida por Neil M. Gorsuch (“[t]o be clear from the outset, I do not seek to adress publicly auhorized forms of killing like capital punishment and war. Such public acts of killing raise unique questions all their own […] I seek only to explain and defend an exceptionless norm against the intentional taking of human life by private persons.”), The Future of Assisted Suicide and Euthanasia, Princeton University Press, Princeton, Oxford, 2009, p. 157 e p. 272, nota 2]. [11] O deputado constituinte, José Ribeiro e Castro, em texto de opinião recente (02/02/2021), publicado no jornal on line Observador , aludiu à força extraordinária desta fórmula, em comparação com as outras propostas de texto então apresentadas: “[a] generalidade dos projetos de Constituição, em 1975, continha formulações jurídicas habituais na proteção do direito à vida. O projeto do CDS dizia: «Constituem direitos e liberdades individuais do cidadão português (…) o direito à vida e à integridade física.» [artigo 12.º, 1.º]. O do PS: «É garantido o direito à vida e integridade física.» [artigo 11.º, n.º 1]. O do MDP/CDE e da UDP nada diziam. O do PPD afirmava: «O Direito à vida e à integridade pessoal é inviolável» [artigo 17.º]. Foi o do PCP a propor a proclamação consagrada: «A vida humana é inviolável» [artigo 30.º, n.º 1] […]” (os textos dos projetos constitucionais em causa estão disponíveis em: https://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dac/01/01/01/016S1/1975-07-11 ). [12] “A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público.” [artigo 1.º (1)]. [13] “Todos têm o direito à vida e à integridade física. A liberdade da pessoa é inviolável. Estes direitos só podem ser restringidos em virtude de lei.” ( Lei Fundamental da República Federal da Alemanha , versão alemã de 23 de maio de 1949, última atualização em 28 de março de 2019, texto disponível em www.bundestag.de ) . [14] Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Coimbra, 1978, p. 92. [15] J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, CRP. Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 447 – “[j]urídi- co-constitucionalmente, não existe o direito à eutanásia activa […,] [r]elativamente à ‘ortotanásia’ («eutanásia ativa indireta») e ‘eutanásia passiva’ – o direito de se opor ao prolongamento artificial da própria vida – em caso de doença incurável («testamento biológico», «direito de viver a morte»), podem justificar regras especiais quanto à organização dos cuidados e acompanhamento de doenças em fase terminal («direito de morte com dignidade»), mas não se confere aos médicos ou pessoal de saúde qual- quer direito de abstenção de cuidados em relação aos pacientes (cfr. Resolução sobre a Carta dos direitos do doente do Parlamento Europeu, de 19/01/84). A Constituição não reconhece qualquer «vida sem valor de vida», nem garante decisões sobre a própria vida.” ( ibidem , p. 450). [16] Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, 2.ª edição, cit., p. 365.

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