TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
84 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL não deixa de “[reproduzir] o núcleo essencial do ilícito típico do crime de homicídio (’matar outra pessoa’)” [3]. Aliás, se naqueles casos, no “pedido da vítima” (para ser morta ou ajudada a morrer), se puder vislumbrar uma qualquer expressão de autonomia e autodeterminação pela morte, a irrelevância desse “consentimento” como causa de justificação (ou de exclusão de ilicitude) não deixa de traduzir a cedência daquela perante o valor protegido da vida humana, enquanto bem jurídico no seu todo indisponível – e que o legislador, a pretexto da existência do mesmo “consentimento”, do mesmo “pedido”, vem inverter, definindo ele próprio as “condições” – da prática da eutanásia – em que a vida humana passa a ser disponível, condições essas que, desse modo defi- nidas, não constituem, em rigor, expressão de qualquer autonomia. É, pois, a legalização da eutanásia – o propósito legislativo que se materializou na aprovação do Decreto n.º 109/XIV, designadamente por via do artigo 2.º deste –, a questão central que confronta a inviolabilidade da vida humana, que com uma ênfase muito particular é afirmada no artigo 24.º, n.º 1 da CRP. E é nessa perspetiva que a opção legislativa expressa nesse Decreto deve ser, desde logo, abordada. 2.1. O Direito à vida, enunciado na epígrafe desse artigo 24.º, não foi criado pelo texto constitucional, não existindo, identitariamente, em função da maior ou menor expressividade que o seu reconhecimento – porque de um reconhecimento ou consagração de um valor pré-existente se trata – assuma nesse texto. Essa expressividade – a qual, não obstante, é intencionalmente forte na Constituição da República Portuguesa – o que faz é reconhecer algo que lhe é anterior, um princípio essencial do Direito, um arquétipo civilizacional [4], cujo significado profundo projeta dimensões valorativas mais amplas que as diretamente sugeridas pela simples consideração do seu exato conteúdo normativo, quando este é procurado desfasadamente da sua essência [5]. Aliás, essa precedência do valor intrínseco da vida humana relativamente ao seu reconhecimento ou con- sagração num texto constitucional revela-se, desde logo, por via da sua inclusão, no quadro das normas de Direito Internacional, nos princípios de jus cogens que, segundo a doutrina, estando “[…] para além da vontade ou do acordo de vontades dos sujeitos de Direito Internacional […,] desempenham uma função eminente no confronto de todos os outros princípios e regras [e] têm uma força jurídica própria, com os inerentes efeitos na subsistência de normas e actos contrários” [6] ou “[…] uma posição e estatuto superior em relação às demais normas da comunidade internacional […]” [ rank and status superior to those of all other rules of the international community ] [7]. Valerá pois, quanto ao direito à vida, mutatis mutandis , a ideia de que “[…] o ‘ jus cogens’ […] constitui uma ‘qualidade’ particular (imperativa) de certas normas, que podem ser de origem seja costumeira, seja convencional […]”[8] podendo afirmar-se, também, que as normas substantivas de Direito Internacional dos Direitos Humanos que consagram o direito à vida se integram “no bloco qualificado das normas de ius cogens ”[9]. 2.1.1. Não obstante, o legislador constituinte em 1975 – sendo que o texto do artigo 24.º (até 1982, artigo 25.º) se mantém inalterado – pretendeu destacar uma força significativa especialmente qualificada – “[a] vida humana é inviolável.” (frase na qual vislumbramos um ponto de exclamação latente) –, reforçada [3] Manuel da Costa Andrade, anotando o artigo 134.º, in Comentário Conimbricense do Código Penal, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Tomo I, Parte Especial, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 96. [4] “[h]á que mergulhar mais fundo, para descobrir a essência das regras adoptadas e aplicadas duma maneira uniforme nas várias ordens jurídicas, que é como quem diz, para descobrir a essência ou arquétipo jurídico escondido na variedade das suas representações positivas, para reconduzir, em suma, essas regras ‘aos seus aspectos mais gerais e únicos verdadeiramente universalizáveis” (José Manuel Moreira Cardoso da Costa, Os Princípios Gerais de Direito como Fonte de Direito Internaciona l, Coimbra, 1963, p. 86, sublinhados no original). [5] [5] “Quando uso o termo «arquétipo», refiro-me a uma disposição particular num sistema de normas que tem um significado que vai além do seu conteúdo normativo imediato, uma significação que deriva do facto de ela resumir ou tornar vivo, para nós, o sentido, o propósito, o princípio ou a política de toda uma área do direito” [Jeremy Waldron “Torture and Positive Law: Jurisprudence for the White House”, in Columbia Law Review, Vol. 105, No. 6 (Oct., 2005), p. 48]. [6] Jorge Miranda, Curso de Direito Internacional Público, 6.ª edição, Princípia, Cascais, 2016, p. 125, que enquadra o direito à vida no princípio, atinente à pessoa humana, da garantia dos direitos inderrogáveis enunciados no artigo 4.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos ( idem , p. 132); no mesmo sentido, considerando pertencerem já ao ius cogens pelo menos os mais importantes dos direitos e das liberdades consagrados na DUDH e nos Pactos de 1966, André Gonçalves Pereira, Fausto de Quadros, Manual de Direito Internacional Público , 3.ª edição, reimpr., Almedina, Coimbra, 1995, p. 284; no sentido de deverem ser consideradas normas de Ius Cogens as normas costumeiras de Direito Internacional Público dos Direitos Humanos, Eduardo Correia Baptista, Direito Internacional Público, Vol. I, 1998 (reimpr.), AAFDL Editora, Lisboa, 2015, p. 171 e Direito Internacional Público, Vol. II, 2004 (reimpr.), AAFDL, Lisboa, 2015, pp. 431 e segs. , em especial, quanto ao direito à vida, pp. 439-440. [7] Antonio Cassese, International Law, 2.ª edição, Oxford University Press, Oxford, 2005, p. 199. [8] Ngyuen Quoc Dinh†, Patrick Daillier, Mathias Forteau, Alain Pellet, Droit International Public, 8.ª edição, L.G.D.J, Paris, 2009, p. 225. [9] Assim, Manuel Diez de Velasco, Instituciones de Derecho Internacional Público , 17.ª edição, Tecnos, Madrid, p. 650.
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