TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
83 acórdão n.º 123/21 leitura sistematizada do mesmo – e prescindimos até de referir o sentido óbvio do debate que o originou e justificou – evidencia o que se pretendeu criar: um quadro jurídico de permissão (por via de um procedi- mento administrativo especial de autorização) da prática da chamada eutanásia ativa por profissionais de saúde. É assim que pouco relevo substancial apresenta a circunstância de a concretização final da situação originada pelo pedido do doente, de que tenha lugar a sua morte antecipada, ocorrer por autoadministração dos fármacos letais produtores desse resultado, ou por heteroadministração dessas substâncias, já que as duas alternativas previstas nos artigos 8.º, n.º 2, e 9.º, n.º 2, do Decreto, no quadro geral que se criou, apenas per- mitem descrever o ato eutanásico em termos que configuram, de um ponto de vista prático, uma distinção muito ténue (parecendo acentuar-se, no caso da autoadministração, a ideia de prestação de assistência a um suicídio) que pouco adianta quanto à substância do problema que a este respeito nos interpela. Qualquer dessas formas de concretização da morte decorre, numa linha de total sobreposição de situações, da intro- dução no nosso ordenamento jurídico, como elemento desencadeador da morte a pedido do próprio (sob o controlo do Estado), dos requisitos desse evento contidos no artigo 2.º do Decreto n.º 109/XIV, estando sempre em causa investir o Estado – ironia das coisas: por força do nosso direito à “autonomia individual” e da nossa “dignidade” enquanto pessoas – do poder de fixar circunstâncias de elegibilidade de alguém para a concretização do propósito de pôr fim à sua vida, que passa a valer como fator de legitimação do Estado, mediante um procedimento especial, a controlar a verificação dessas circunstâncias e a participar ativamente na consecução desse resultado. Constitui, pois, objetivo precípuo do diploma aprovado pelo Parlamento a opção de legalizar, em certas condições, a prática da eutanásia ativa, sendo que com a expressão eutanásia ativa estão em causa os casos em que o “médico ou profissional de saúde devidamente habilitado para o efeito mas sob supervisão médica” (nas palavras do artigo 8.º, n.º 2, do Decreto) realiza o último passo causal diretamente determinante da morte do paciente, administrando-lhe os fármacos letais, como também estão em causa – sem que, em rigor, signifiquem algo de substancialmente diferente da eutanásia, e até de a podermos qualificar como ativa – as situações em que esses profissionais realizam o penúltimo passo causal da morte, conducente à autoadmi- nistração do fármaco letal pelo próprio paciente. Em qualquer dos casos – embora sempre possamos “jogar” com as palavras e os conceitos – existe, por banda dos mesmos profissionais, o controlo da situação direta- mente causal da morte do paciente. A perspetivação desta situação pelo lado do Direito Penal, antepondo uma consequência à causa, expressa tão-somente um deliberado viés na abordagem do tema central, a eutanásia, ele próprio, aliás, refe- renciado no Decreto através de uma expressão indireta – antecipação da morte medicamente assistida –, não isenta até de ambiguidade (quiçá intencional e tributária de algum propósito persuasivo). É que existem na prática médica procedimentos clínicos – coisa que a causação intencional e direta da morte, mesmo realizada por um médico, não é – que podem envolver, designadamente num quadro de duplo efeito, algum tipo de antecipação da morte [1], mas que em nada correspondem ao que está em causa na eutanásia ativa. Ou seja, pressuposto “[…] que a construção dogmática do conceito de crime é afinal […] a construção do conceito de facto punível” [2], regulamenta-se a eutanásia – adjetiva-se o ato de produzir, em ambiente médico, a morte de alguém a seu pedido –, afirmando-se a exclusão, relativamente à situação que a consubstancia, da punibilidade (“[q]uem matar outra pessoa é punido […]”, artigo 131.º do Código Penal), no quadro de um procedimento administrativo especificamente destinado, em última análise, a esse resultado, sendo certo que a punibilidade do facto que se expressa num dos resultados possíveis a culminar tal procedimento (autorizar a morte de alguém a seu pedido), não fora a opção de legalizar a prática da eutanásia em certas condições, perma- neceria, digamo-lo assim, sob a alçada do Direito Penal. Com efeito, isso sucederia nos casos de privilegiamento que tematicamente são próximos da eutanásia ou da ajuda ao suicídio (dois dos tipos visados pelo artigo 27.º do Decreto n.º 109/XIV), como é o caso do homicídio a pedido da vítima (artigo 134.º do Código Penal), que [1] Rui Medeiros, Jorge Pereira da Silva, comentário ao artigo 24.º, in Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada , Vol. I, 2.ª ed. revista, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2017, pp. 389-390. [2] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral , 3,ª edição, Tomo I, Gestlegal, Coimbra, 2019, p. 275.
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