TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

80 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL com dificuldade na comunicação oral e escrita» (cfr. Paula Encarnação, Clara Costa Oliveira e Teresa Mar- tins, ob. cit. , pp. 28-29). Pode discutir-se a maior ou menor fiabilidade dos resultados destes instrumentos de heteroavaliação. Porém, não pode sustentar-se a inexistência de meios capazes de proceder a uma heteroavaliação, ainda que com uma margem inelutável de subjetividade associada. Em boa verdade, nem sequer pode excluir-se, em absoluto, a possibilidade de gradação objetivável do sofrimento. A circunstância desta realidade, na sua essência, corresponder a uma experiência subjetiva multidimensional – uma «situação existencial de aflição grave [que] assume inevitavelmente uma dimensão holística» – não impossibilita o seu diagnóstico nem uma avaliação de diferentes graus de sofrimento. Cumpre, isso sim, recorrer aos instrumentos de avaliação utili- zados nesse tipo de diagnóstico, o que, de resto acaba por ser reconhecido no n.º 42 do Acórdão (até com referência expressa à necessidade de a determinação do sofrimento intolerável ser «confiada a profissionais de saúde qualificados», e não um qualquer «médico escolhido pelo doente», conforme previsto no artigo 3.º, n.º 2, do Decreto). Este aspeto é importante, uma vez que a própria função atribuída pelo legislador ao “critério” sofrimento intolerável exige uma objetivação da apreciação realizada, quer em termos de fundamentação da mesma (cfr. o artigo 4.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV), quer para efeitos do respetivo controlo pelos outros médicos e pela própria CVA (cfr. os artigos 5.º, n.º 1, e 7.º, n.º 1, do mesmo normativo). Ora, como resulta da lei- tura que o próprio Acórdão faz do enunciado do critério em análise, o mesmo é insuficiente para vincular o médico orientador a uma predefinição da metodologia que irá seguir na avaliação do sofrimento intolerável afirmado pela pessoa que se lhe dirige em vista do pedido de antecipação da morte medicamente assistida, documentando os passos essenciais da avaliação feita segundo o ou os métodos por si escolhidos. Um médico orientador, que até pode carecer da necessária formação específica neste domínio, poderá, assim, bastar-se com o autorrelato do doente e a impressão com que tenha ficado do mesmo para formar a sua opinião e ela- borar o subsequente parecer fundamentado (o qual, nestas condições, poderá acabar por ser fundamentado apenas numa impressão subjetiva e incontrolável do clínico). Acresce que num domínio como o que está em causa, e em que as várias decisões têm consequências definitivas e irreversíveis, não podem subsistir dúvidas sobre o que é realmente exigido pelo legislador e o que preveem as leges artis interpretadas pelos médicos aplicadores da lei. Na verdade, a não clarificação expressa, por parte do legislador, da responsabilidade última pela avaliação do sofrimento, nomeadamente se é sufi- ciente o autorrelato ou se é necessária a heteroavaliação pelo médico – ainda que o Acórdão assuma expressa- mente que deve ser exigida a heteroavaliação médica –, tem potencial para criar uma situação de insegurança jurídica e até de desigualdade, pois médicos orientadores diferentes podem fazer uma interpretação distinta do critério, bastando-se uns com o autorrelato, enquanto outros considerarão a sua própria avaliação. Por outras palavras, subsiste, também neste aspeto, uma indeterminação não admissível do critério em análise, que o legislador pode e deve clarificar, não sendo suficiente, atento o caráter definitivo e irreversível das decisões em causa, uma remissão implícita e vaga para as leges artis de certas especialidades médicas, as quais nem sequer têm uma correspondência necessária com a especialidade do médico orientador. 3. Segundo o Acórdão, o caráter “intolerável” do sofrimento corresponderá a uma «exigência qualitativa»: «não basta que o peticionante sofra; é necessário que esteja em estado de sofrimento intolerável» (n.º 42). Sem necessidade de entrar em especulações sobre o caráter dinâmico da realidade e as leis da dialética, constitui uma experiência comum, e é do conhecimento geral, que mudanças quantitativas de uma realidade suscitam mudanças qualitativas e vice-versa. Assim também com o sofrimento, o qual não corresponde a algo de estático. Significa isto que, sob pena de se anular a função de critério ou condição que a lei pretende atribuir ao sofrimento, o médico orientador tem de recorrer a estratégias ou instrumentos que não só permi- tam despistar situações agudas ou meramente pontuais, como também avaliar (e distinguir) um sofrimento mais grave e menos grave.

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