TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
79 acórdão n.º 123/21 assistida não punível que o Decreto pretende instituir» entre a concreta patologia do doente e o sofrimento intolerável (cfr. o n.º 42). A importância da relação causal entre a condição médica ou clínica e o sofrimento para efeitos de apre- ciação no caso concreto de um pedido de antecipação da morte medicamente assistida é reconhecida em diversos ordenamentos: por exemplo, nos Países Baixos, na Bélgica e no Canadá. Por outro lado, o nexo de causalidade encontrava-se previsto no artigo 3.º, n.º 1, do Projeto de Lei n.º 67/XIV/1.ª, apresentado pelo PAN («casos de doença ou lesão incurável, causadora de sofrimento físico ou psicológico intenso, persistente e não debelado ou atenuado para níveis suportáveis e aceites pelo doente»); e no artigo 3.º, n.º 1, Projeto de Lei n.º 168/XIV/1.ª, apresentado pelo PEV («doente que, estando em situação de profundo sofrimento decorrente de doença grave e incurável e sem expectável esperança de melhoria clínica»). O abandono da referência a tal nexo na redação final que consta do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV não pode, por isso, deixar de suscitar dúvidas quanto a saber se, afinal, o mesmo é ou não exigível. Abre-se, deste modo, um espaço de indeterminação não negligenciável, atentas as consequências quanto ao sentido e alcance do critério em causa, competindo o esclarecimento de tal questão exclusivamente ao legislador. 2. Por outro lado, os lugares normativos paralelos, porque pressupõem conhecimentos e práticas médicas e clínicas especiais, evidenciam não só a necessidade de algum tipo de formação específica do médico orientador (de modo a que este fique habilitado a aplicar as leges artis mais específicas e próprias desta abordagem em fim de vida, nomeadamente para avaliar “o que é dito”, “como é dito” e a própria linguagem corporal do indivíduo) – já que, em relação ao médico especialista referido no artigo 5.º do Decreto n.º 109/XIV, o mesmo não tem obrigatoriamente de examinar o doente, pelo que, em relação à sua apreciação, a ideia de «analogia com a anamnese médica em contexto terapêutico» nem sequer tem as suas condições objetivas de aplicação legalmente garantidas –, como também a possibilidade de se fixarem padrões de atuação em vista da avaliação do sofrimento. Como referem Paula Encarnação, Clara Costa Oliveira e Teresa Martins, «[o] sofrimento não pode ser cuidado ou aliviado, a menos que seja reconhecido e diagnosticado» (Autoras cits., “Dor e sofrimento con- ceitos entrelaçados – perspetivas e desafios para os enfermeiros» in Revista Cuidados Paliativos , vol. 2, n.º 2, outubro 2015, p. 27). Ou seja, a intervenção dos profissionais de saúde – médicos e enfermeiros –, designa- damente em situações de fim de vida, depende, também, da sua capacidade de avaliar o sofrimento: (i) quer a sua existência, (ii) quer as dimensões em causa no caso concreto; (iii) quer, ainda, a sua intensidade. Só assim se compreende que a Organização Mundial de Saúde tenha vindo redefinir o conceito de “cuidados paliativos”, em 2002, passando a considerar como primordial o alívio do sofrimento. Existe, na verdade, muita pesquisa e existem também novos instrumentos de avaliação desenvolvidos, em vista de se conseguir rastrear e diagnosticar o sofrimento. «Krikorian et al. (2013) num artigo intitu- lado Suffering Assessment: A Review of Available Instruments for Use in Palliative Care cujo objetivo foi identi- ficar e descrever os instrumentos existentes desenvolvidos para avaliar o sofrimento em cuidados paliativos, bem como comentar as suas propriedades psicométricas, referem que, de acordo com os resultados dessa revisão, cerca de 10 (dez) instrumentos para avaliar o sofrimento estão disponíveis, tanto para fins clínicos, como de investigação, nomeadamente: Initial Assessment of Suffering (IAS); Perception of time; Single-item Numeric Rating; Pictorial Representation of Illness and Self Measure (PRISM); Structured Interview for Symp- toms and Concerns in Palliative Care (SISC); Mini-Suffering State Examination (MSSE); Suffering Assessment Tool (SAT); SOS-V; Suffering scale e The Suffering Scales . Segundo Krikorian et al . (2013), dos dez instrumen- tos analisados na sua revisão, os dois que apresentam as propriedades psicométricas mais consistentes são o PRISM e o SISC, para além de serem os instrumentos conceptualmente mais coerentes. Ambos permitem uma abordagem não-diretiva, proporcionam uma medida quantitativa e podem ser utilizados por doentes
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