TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
788 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Efetivamente, como já se referiu, se o Ministério Público é o “defensor” da independência dos Tribunais – con- tra tudo e contra todos –, tal significa que se concebe ontologicamente como possível a existência na Sociedade de um corpo especial da Administração Pública (e só ele, que nem sequer a restante parte da mesma) incorrupto e incorruptível, guardião supremo de toda a Virtude e dos Princípios Ético-constitucionais que estruturam e dão consistência ao tecido social comunitário (e ao Estado), e que paira puro, imaculado e impoluto acima das demais instituições e dos restantes comuns mortais, todos eles (o resto da Humanidade que não pertence a esse corpo especial, entenda-se) manchado pelo efeito conspurcador do “pecado original”. E, claro, insuscetível de ser um dos ‘atacantes’ (ou ‘violadores’) da independência dos Tribunais. Acontece que uma tal conceção ideológica traduz uma socialmente muito perigosa pulsão no mínimo iliberal – se não mesmo claramente totalitária – totalmente incompatível com os Princípios Éticos e o pensamento cultural formador/fundador do Estado de Direito e da Democracia consagrados no conjunto de Estados que integram o chamado Mundo Ocidental – e que assenta no pressuposto ontológico de que, porque todos os seres humanos são uns imperfeitos “pecadores”, têm de existir na Sociedade freios e contrapesos ( checks and balances , para usar a expressão em língua inglesa), que impeçam a preponderância de certos indivíduos ou grupos sobre os demais membros da Comunidade e o controle, pelos mesmos, do Estado. E é essa visão do Mundo e da Natureza Humana que está inscrita na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente no seu art.º 2.º, em particular quando no mesmo comando se afirma, muito claramente, que a “República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas”. Logo, também por essa razão, não pode aceitar-se que um tal dispositivo seja considerado conforme a Constituição da República Portuguesa. Todavia, e exatamente pelos motivos apontados (isto é, para assegurar a existência desse sistema social de freios e contrapesos), tem de ser assegurada a possibilidade de pôr cobro a eventuais (e ontologicamente sempre possíveis) abusos, sendo o Ministério Público um instrumento precioso na defesa da legalidade constitucional democrática (mas havendo que ser reconhecido que esse corpo especial da Administração Pública pode igualmente ser uma das potenciais origens de abusos), importa dar-lhe meios para exercer, com eficácia, essa sua muito relevante função institucional. Em suma, por constituir uma violação do principio da separação de poderes e do principio da organização democrá- tica e pluralista do Estado, impõe-se declarar inconstitucional, mas apenas em termos parciais, o disposto na alínea j) do n.º 1 do art.º 4.º do EMP aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, considerando conforme a essa Norma Fun- damental somente a parte final dessa alínea que se reporta à competência para recorrer de todas as decisões e deliberações judiciais que violem a Constituição e/ou a legislação ordinária em vigor no País. E tanto basta para justificar a decisão que aqui e agora se profere, uma vez que, seja qual for a instância em que exercem a sua atividade estatutária, a função institucional e social dos Juízes é a de dirimir os conflitos que realmente existam e sejam submetidos ao seu julgamento e na exata medida do que é necessário e indispensável à resolução desses conflitos ou litígios (art.º 608.º, n.º 2, do CPC 2013, que corresponde ao n.º 2 do art.º 660.º do entretanto revogado CPC 1961), sendo sua estrita obrigação não só não praticar como, ao mesmo tempo, impedir a prática nos processos de atos inúteis, impertinentes e dilatórios. Ou seja e dito de outro modo, no exercício dessa sua função constitucional, devem os Juízes, no mínimo, ter sempre presente o Princípio da Parcimónia ou Navalha de Occam (ou de Ockham), postulado lógico atribuído ao frade francis- cano inglês William de Ockham, que viveu entre 1287 e 1347 dC, que enuncia que “as entidades não devem ser multi- plicadas além da necessidade”, sendo, neste caso, as “entidades” os passos lógicos do silogismo judicial através dos quais se opera a subsunção dos factos provados na previsão das normas que regulam a concreta relação material controvertida. O que significa que nas decisões e deliberações judiciais deve ser evitado tudo o que não seja necessário ao jul- gamento do real e efetivo objeto do litígio submetido ao julgamento do Tribunal em qualquer das suas instâncias. 2.4.1.4. Pelo exposto e em conclusão, declara-se oficiosamente que a norma que constitui a alínea j) do n.º 1 do art.º 4.º do EMP aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, é parcialmente inconstitucional por violação do disposto nos art. os 2.º, 111.º, n.º 1, e 203.º da Constituição da República, decretando-se que na mesma apenas se estatui validamente
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