TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
71 acórdão n.º 123/21 42. Feito este percurso, demonstrada a forte dimensão de subjetividade do conceito de sofrimento, poderá perguntar-se qual o sentido da exigência qualitativa que decorre do adjetivo intolerável. De facto, para preencher o critério normativo complexo do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto n.º 109/XIV, não basta que o peticionante sofra; é necessário que esteja em estado de sofrimento intolerável. Como, então, avaliar se o sofrimento assume essa propriedade? Argumenta o requerente que essa questão não encontra a devida resposta no sistema normativo insti- tuído pelo citado Decreto, ficando a concretização do conceito largamente dependente da decisão do médico orientador e do médico especialista, privados de uma qualquer bússola orientadora, razão por que não se mostraria satisfeito, nesse ponto, o teste da determinabilidade da medida legislativa. Não é isso, todavia, o que sucede. Afirmar que o sofrimento é um fenómeno privado – idiossincrático, único ao sujeito – não significa que esteja à margem de qualquer objetivação, ou que seja inapreensível por terceiros, cingidos à aceitação acrítica – meramente empática – do relatado na primeira pessoa pelo paciente. Sem colocar em crise o essencial da visão personalista de Eric Cassell sobre as finalidades da medicina, um conjunto importante de autores que se dedica à problemática do sofrimento, perspetivando os critérios de elegibilidade para o acesso aos cuidados paliativos, com particular relevo para a sedação paliativa, e, também, para a antecipação da morte assistida introduzida nos Países Baixos (em que é requisito o convencimento do médico de que o sofrimento do doente é insuportável), aponta algumas limitações à orientação estritamente subjetivista do autor. Contrapõe-lhe uma visão que não dispensa um referencial analítico de índole objetiva (mesmo que negando a possibilidade de medir o sofrimento, ou estabelecer rigidamente diversos estalões, em termos similares ou aproximados ao que sucede com a determinação do quantum doloris no âmbito da responsabilidade civil), construído a partir do estado do conhecimento e da experiência da medicina, idóneo a despistar tanto os casos em que a vontade não seja séria ou esclarecida, como aqueles em que a avaliação do próprio sobre o sofrimento, tido como intolerável ou insuportável, assenta em premissas erradas ou em enganos. Nessa orientação, que aceita espaços de juridicidade na avaliação do sofrimento, podem apontar-se, entre outros, Henri Wijsbek, “The subjectivity of suffering and the normativity of unbearableness” in Stuart J. Youngner (ed.), Physician-assisted death in perspective: Assessing the Dutch experience , Cambridge University Press, 2012, pp. 319-332; Govert den Hartogh, “Suffering and dying well: on the proper aim of palliative care” in Medicine Health Care and Philosophy , 2017, 20, pp. 413-424; Tyler Tate e Robert Pearlman, “What We Mean When We Talk About Suffering – And Why Eric Cassell Should Not Have The Last Word”, Pers- pectives in Biology and Medicine, Volume 61, 1, 2019, pp. 95-110; Claudia Bozarro e Jan Schildmann, “ ‘Suf- fering’ in Palliative Sedation: Conceptual Analysis and Implications for Decision Making in Clinical Practice” in Journal of Pain and Symptom Management, vol. 56, 2, agosto de 2018, pp. 288-294; e Clara Costa Oliveira, “Para compreender o sofrimento humano” in Revista Bioética , 2016, 24 (2), pp. 225-234. O reconhecimento de que o sofrimento, ainda que fortemente subjetivo, permanece heteroavaliável e verificável, usando para tanto, nas suas expressões não estritamente fisiológicas, ferramentas desenvolvidas por ramos da ciência médica como a psiquiatria ou a psicologia, suporta o entendimento de que o critério normativo situação de sofrimento intolerável, pese embora amplo e interminável, desprovido da definição de situações concretas, não é, em si mesmo, indeterminável. A sua interpretação e aplicação é confiada a profissionais de saúde qualificados, sujeitos ao cumprimento das leges artis , desde logo em função do conhe- cimento científico relativo à concreta patologia do doente, de incontornável natureza objetiva, com a qual o sofrimento intolerável forma uma unidade de sentido na teleologia do sistema normativo de antecipação da morte medicamente assistida não punível que o Decreto n.º 109/XIV pretende instituir. É certo que poderia o legislador ter escolhido outros caminhos, seguindo, por exemplo, o modelo adotado pela Lei de Bases dos Cuidados Paliativos, que dedica toda a base II à definição de um conjunto de conceitos. Todavia, não é menos certo que, face à rápida evolução do conhecimento médico, uma excessiva aproximação às expressões concretas da vida comportaria, por sua vez, um elevado risco de perda de consis- tência lógico-categorial. Como refere Costa Andrade, a propósito do artigo 150.º do Código Penal – que,
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