TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
70 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL na adstrição da Rede Nacional de Cuidados Paliativos à prestação de cuidados paliativos aos doentes que, independentemente da idade e patologia, estejam numa situação de sofrimento decorrente de doença grave ou incurável, com prognóstico limitado e em fase avançada e progressiva [n. os 1 e 2, alínea a) , da base IX]. Mais recentemente, a Lei n.º 31/2018, de 18 de julho, que estabelece um conjunto de direitos das pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida, toma como objeto a consagração do direito das pessoas nessa condição «a não sofrerem de forma mantida, disruptiva e desproporcionada» (artigo 1.º); veda a distanásia, através de obstinação terapêutica e diagnóstica que prolongue ou agrave de modo desproporcio- nado o sofrimento (artigo 4.º); e acolhe o direito do doente à recusa de suporte artificial das funções vitais e a prestação de tratamentos que não visem exclusivamente a diminuição do sofrimento (artigo 5.º, n.º 3), assim como o direito dos doentes com prognóstico vital estimado em semanas ou dias, que apresentem sintomas de sofrimento não controlado por medidas de primeira linha, a receber sedação paliativa, através de fármacos «ajustados exclusivamente ao propósito de tratamento do sofrimento, de acordo com os princípios da boa prática clínica e da[s] leges artis » (artigo 8.º, n.º 1). Decorre dessa normação que o conceito de sofrimento, embora muitas vezes tenha na sua génese a dor física, somática, provocada por alteração de tecidos corporais, não se confunde com o conceito de dor, rela- cionando-se com outros fatores, para além dos problemas estritamente fisiológicos do sujeito. Como emerge da reflexão de Eric J. Cassell, pode haver dor sem sofrimento, pois nem todas as dores são vividas pela pessoa como geradoras de perturbação ou angústia existencial, por não significarem uma doença ou disfunção, dando como exemplo a dor da parturiente ( The Nature of Suffering and the Goals of Medicine, 2nd edição, Oxford University Press, 2004, p. 34). Por outro lado, são frequentes os fenómenos de sofrimento sem dor física, de que é exemplo o luto patológico, podendo inclusivamente envolver apenas a antecipação de um evento futuro, tido como profundamente desagregador para a pessoa, ao invés do que sucede com os processos decorrentes de estímulos nervosos gerados por algum lugar ou lugares do corpo. Para o autor, o sofrimento pode ser definido genericamente como um estado de aflição severa, associado a acontecimentos que ameaçam a integridade de uma pessoa. Exige consciência de si, envolve tanto as sensa- ções como as emoções, sofre uma influência profunda das representações sociais e das relações interpessoais. Enquanto situação existencial de aflição grave, assume inevitavelmente uma dimensão holística, sofrendo a pessoa como um todo, mesmo que o estado de sofrimento possa ter como sua raiz mais funda uma particular vertente do ser-pessoa (emocional, fisiológica, espiritual ou outra). Essa mesma visão do sofrimento transparece do Parecer n.º 107/CNECV/2020 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, quando refere que «[o] sofrimento inclui experiências várias e polimórfi- cas (impotência, angústia, vulnerabilidade, perda de controlo, ameaça à integridade do projeto existencial). Compõe-se de muitos elementos, somáticos e psicológicos, que são indissociáveis entre si e deterioram a qualidade de vida, de modo tal que alguém pode mesmo sentir que não vale a pena viver» (p. 4). Por assim ser, não parece haver dúvida de que a noção de sofrimento, eleito como pressuposto da descri- minalização de condutas agora compreendidas na previsão dos crimes previstos nos artigos 134.º e 135.º do Código Penal, e como critério de acesso à antecipação da morte medicamente assistida, assume uma natureza eminentemente subjetiva, estando estreitamente associado à identidade pessoal de cada um, ao modo como se organiza na sua vivência interior. E que, na respetiva identificação, o elemento informativo mais rele- vante para o médico orientador e para o médico especialista, não pode deixar de ser o modo como o doente manifesta e verbaliza o seu sofrimento, ou seja, a perspetiva individual do doente, podendo estabelecer-se aqui uma analogia com a anamnese médica em contexto terapêutico, enquanto procedimento fundamental para fazer o diagnóstico preciso e instituir as práticas terapêuticas mais adequadas às condições clínicas do paciente, bem sedimentado nas leges artis . Recorde-se que o conceito de sofrimento é igualmente acolhido no âmbito dos cuidados paliativos e em fim de vida, numa perspetiva de atuação mitigadora do sofrimento, que pressupõe justamente a avaliação constante e criteriosa do mesmo, sem o que não será possível aferir das possibilidades de assistência médica e medicamentosa.
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