TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

69 acórdão n.º 123/21 Embora não constando do n.º 1 do artigo 2.º, e servindo um propósito primacialmente procedimental, estas disposições não deixam de assegurar que algumas informações, relevantes para a verificação do preen- chimento em concreto dos pressupostos constantes da previsão daquele preceito, seguramente constam do processo: entre estas destacam-se, pela sua relevância, o historial clínico do doente e o juízo de prognose sobre a expectável evolução da sua condição física. Apesar de impor, como etapa procedimental insuperável, exercícios de retrospeção e de prognose que se encontram ao serviço de uma análise dinâmica do historial clínico do doente e da densificação de qua- lificações como definitiva, incurável e fatal, o Decreto n.º 109/XIV abstém-se de fazer constar do regime um elenco de definições (análogo, v. g. , ao que consta da base II da Lei de Bases dos Cuidados Paliativos – Lei n.º 52/2012, de 5 de setembro – ou semelhante ao que é previsto no artigo 3.º da proposicion de Ley orgánica de regulación de la eutanasia recentemente aprovada em Espanha). Ademais, aquele Decreto diverge de opções adotadas em outros países, ao não fazer constar da norma exigências como o «carácter duradouro, constante, permanente ou insuscetível de ser aliviado» do sofrimento sentido (presente na legislação belga e luxemburguesa, por exemplo) ou a «ausência de perspetivas de melhoria» (presente, v. g. , na legislação holandesa e luxemburguesa) e não impõe, expressamente, que fatores deste tipo devam ser ponderados nos pareceres a elaborar durante o procedimento. No que em especial respeita aos segmentos normativos identificados no requerimento, outros problemas emergem da indeterminação conceitual que os caracteriza e que justificam um tratamento autónomo. G) Cont.: a insuficiente densificação normativa do conceito “em situação de sofrimento intolerável” 41. Com referência aos diversos pressupostos da antecipação da morte medicamente assistida não puní- vel, o requerente exprime dúvidas relativamente ao elemento situação de sofrimento intolerável – expressa- mente qualificado como primeiro critério (requerimento, ponto 5.º). Começa por apontar ao conceito de “sofrimento” uma forte dimensão de subjetividade, decorrente de o Decreto n.º 109/XIV omitir quer a sua definição, quer a indicação de critérios para a sua interpretação, preenchimento ou mensuração pelo médico orientador e pelo médico especialista, opções legislativas essas que seriam geradoras de insegurança jurídica, afetando todos os envolvidos: peticionante, profissionais de saúde, membros da CVA e cidadãos em geral (cfr. requerimento, ponto 6.º). Contudo, a mobilização pelo legislador do conceito de sofrimento não é nova. Encontra-se, por exemplo, na definição do crime de homicídio qualificado, integrando a previsão de dois dos exemplos-padrão em que se estrutura o tipo: é suscetível de revelar especial censurabilidade ou perversidade do ato de produzir a morte a circunstância de o agente empregar tortura ou ato de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima [alínea d) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal]; ou ser deter- minado pelo prazer de causar sofrimento [alínea e) do mesmo preceito]. Constitui, igualmente, elemento do regime jurídico-penal das intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, sendo a intenção de minorar o sofrimento uma das finalidades terapêuticas que o legislador penal exclui das incriminações das ofensas corporais, quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, tais intervenções ou tratamentos se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis , por um médico ou pessoa legalmente autorizada (cfr. o artigo 150.º, n.º 1, do Código Penal). Para além do ordenamento penal, o conceito de sofrimento encontra lugar – e lugar central – noutras disciplinas jurídicas, de evidente proximidade e conexão com aquela aqui em apreço. Assim, a Lei n.º 52/2012, de 5 de setembro, a Lei de Bases dos Cuidados Paliativos, acolhe o conceito na definição e âmbito dos “cuidados paliativos”, com referência a «doentes em situação de sofrimento decor- rente de doença incurável ou grave, em fase avançada ou progressiva» e à «prevenção e alívio do sofrimento físico, social e espiritual», que associa não apenas à «dor e outros problemas físicos», mas também a outros problemas «psicossociais e espirituais» [alínea a) da base II e n.º 1 da base III]; na definição de “obstinação diagnóstica e terapêutica”, enquanto fonte, por si própria, de «sofrimento acrescido» [alínea d) da base II];

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