TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

638 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL exigiria a garantia do duplo grau de jurisdição. Na medida em que a Constituição garante o acesso aos tri- bunais contra quaisquer atos lesivos dos direitos dos cidadãos ( maxime dos direitos, liberdades e garantias), sejam esses atos provenientes de particulares ou de órgãos do Estado, compreende-se que, mesmo fora da área penal, se garanta o direito à impugnação judicial de todas as decisões judiciais que constituam a causa direta da afetação de tais direitos. Necessário é, contudo, que se verifiquem dois pressupostos: i) que haja, efetivamente, uma afetação de um direito fundamental de que o recorrente seja titular; ii) que essa afetação corresponda a uma restrição, operada diretamente, e em primeira linha, pela decisão judicial, isto é, que não decorra da lei, mas do ato do juiz. Ora, mesmo que se considere a decisão do Tribunal da Relação sobre o levantamento do sigilo bancário uma decisão judicial que afeta direitos, liberdades e garantias, importa, todavia, sublinhar que o titular do interesse protegido pelo direito fundamental à reserva da vida privada acautelado pelo segredo profissional não é a entidade ou o profissional obrigado ao sigilo. O seu titular é antes o sujeito a quem respeitam os dados cobertos pelo segredo. O sigilo profissional imposto à CMVM (seus órgãos, seus titulares, trabalhadores e pessoas que lhe prestem serviços) constitui a decorrência do exercício da atividade de supervisão que lhe está cometida. Não se trata de um privilégio concedido ao regulador, nem visa, pelo menos diretamente, a proteção dos seus interesses ou sequer dos interesses do mercado que regula. Não estamos, portanto, perante um direito fun- damental da entidade de supervisão, mas de um dever funcional que é instrumental para que esta prossiga as suas atribuições, protegendo indiretamente direitos fundamentais dos administrados, como a proteção da sua vida privada ou a sua propriedade. Nessa dimensão, existe também uma diferença face aos casos em que o sigilo está associado ao exercício de um direito fundamental pelo obrigado ao segredo, como é o caso dos jornalistas ou dos sacerdotes. A CMVM é uma pessoa coletiva pública, vinculada ao princípio da legalidade e à prossecução do interesse público, não sendo, por isso, comparável com entidades privadas. Não é à CMVM que cabe a decisão sobre a observância ou a dispensa do segredo a que por lei está obrigada. Pelo contrário, a mera autorização dos operadores no mercado (interessados para efeitos do artigo 354.º, n.º 3, do CVM) é suficiente para a desvincular do dever de guardar o segredo. Na verdade, quando é determinada a quebra de segredo, levantando, portanto, o dever de sigilo, a CMVM não vê restringido qualquer direito. Limita-se a ficar desonerada de um dever que lhe é imposto por lei numa dada situação concreta. Não se pode, pois, encontrar uma imposição constitucional de existência de recurso por violação de um direito fundamental de que a CMVM não é titular. Não se olvida que, a par da proteção da reserva da vida privada do titular dos dados, existe também uma dimensão de interesse público e coletivo na imposição de segredo profissional ao regulador, tendo em vista assegurar a eficácia da supervisão pública de determinada atividade. Nesta dimensão, a preservação do segredo surge também como indispensável à confiança entre os diversos operadores, bem como à confiança destes no supervisor. Mas este é um interesse que, além de concorrer com outros interesses públicos – como seja o interesse na realização da justiça – não legitima o supervisor a patrocinar os titulares dos interesses diretamente protegidos pelo dever de sigilo. Estes são as pessoas – singulares ou coletivas – relativamente às quais o regulador tomou conhecimento de dados, informações ou documentos no âmbito da sua atividade de supervisão. No que respeita à dimensão de tutela do segredo estabelecido em função do interesse público prosse- guido pelo regulador, em cuja atividade releva de forma particular uma ideia de proteção da confiança, de realçar será que, tal como o segredo bancário, também o segredo profissional imposto à CMVM, enquanto entidade de supervisão do mercado de instrumentos financeiros, tem um carácter relativo, cedendo perante outros direitos, nomeadamente o da realização da justiça. Por isso há quem o classifique como «um segredo profissional débil, no sentido de que cede perante o dever de cooperação com as autoridades judiciárias, quando particulares exigências de investigação criminal o imponham, mas sempre dentro de apertados limi- tes e rígidas exigências de controlo que, tanto quanto possível, harmonizem os dois interesses em confronto» (Parecer n.º 28/86, de 14 de janeiro de 1988, da Procuradoria-Geral da República, in Pareceres, VI, pp. 419

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=