TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

61 acórdão n.º 123/21 Assim sendo, o dever de proteção da vida (e, bem assim, da autonomia) de quem pretende antecipar a sua morte por se encontrar doente, numa situação de grande sofrimento e sem perspetivas de recuperação, impõe uma disciplina rigorosa quanto às situações – os casos típicos – que justificam, segundo a opção legis- lativa, o acesso à morte medicamente assistida e garantias procedimentais robustas e adequadas a salvaguar- dar a liberdade e o esclarecimento do paciente e, outrossim, a assegurarem o controlo da verificação concreta dos casos previstos. Só desse modo se cumprem as exigências de certeza e de segurança jurídica próprias de um Estado de direito democrático, garantidoras de que a antecipação da morte medicamente assistida se contém dentro dos limites que a justificam constitucionalmente, face ao dever de proteção decorrente da inviolabilidade da vida humana: a salvaguarda do núcleo de autonomia inerente à dignidade de cada um, enquanto sujeito, ou seja, um ser autodeterminado e autorresponsável. As situações em que a antecipação da morte medicamente assistida é possível têm, por isso, de ser claras, antecipáveis e controláveis desde o momento em que aquela prática se encontre estabelecida normativa- mente, devendo o procedimento assegurar a determinabilidade controlável das inevitáveis indeterminações conceituais. Incumbe ao legislador, por esta via, prevenir a possibilidade de indesejáveis e imprevistas “ram- pas deslizantes”. O mérito do sistema legal de proteção deverá, assim, ser objeto de uma avaliação global, que considere as possibilidades de interação entre as condições materiais relativas ao paciente e sua condição e o procedi- mento, na sua vertente clínica e administrativa. Não é de descurar que o segundo, além das finalidades que lhe são próprias, também possa desempenhar uma função de compensação de insuficiências ao nível das primeiras. E) A insuficiente densificação normativa dos conceitos descritivos dos critérios de acesso à morte medicamente assistida questionados pelo requerente face ao princípio da legalidade criminal 34. Os vícios concretos apontados pelo requerente ao Decreto n.º 109/XIV prendem-se com a inde- finição, insuficiente densificação ou indeterminabilidade dos conceitos ou fórmulas verbais utilizados para recortar as hipóteses em que não é punível a morte medicamente assistida (cfr. o requerimento, pontos 6.º a 9.º e supra o n.º 10) de que resultaria «cabe[r] aos clínicos, no âmbito do procedimento, a definição do preenchimento dos pressupostos para o exercício da antecipação da morte medicamente assistida, sendo depois tal verificado e confirmado pela Comissão de Verificação e Avaliação.» (requerimento, ponto 11.º; vide também os seus pontos 6.º, 7.º e 10.º). Esta indeterminação, segundo o requerente, é suscetível de contender com os princípios da legalidade e da tipicidade criminal, consagrados no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição; e a consequente delegação do poder de interpretar esses conceitos, que ao legislador competiria densificar, seria vedada pelo artigo 112.º, n.º 5, da Constituição. 35. Preliminarmente, importa recordar que a antecipação da morte medicamente assistida não punível prevista no artigo 2.º, n.º 1, do citado Decreto só pode ocorrer na sequência de um procedimento clínico e legal formalizado em que intervém com poder autorizativo a CVA. Substancialmente, o seu parecer favorável corresponde a uma autorização permissiva que, como tal, possibilita a passagem à fase de concretização da decisão do doente (cfr. os artigos 7.º, n.º 4, e 8.º). O direito à antecipação da morte preexiste nas condições definidas no referido artigo 2.º, n.º 1; não é conferido por tal parecer (que, por isso, não corresponde a uma “licença para matar”). Assim, caso não se encontrem reunidas as condições previstas nesse preceito, os parece- res – todos eles, incluindo o da CVA – não podem ser favoráveis; caso contrário, os mesmos pareceres devem ser favoráveis. Perante um parecer favorável da CVA, os profissionais de saúde que efetivamente antecipem ou colaborem na antecipação da morte de alguém deixam de poder ser perseguidos criminalmente apenas com base nesse facto, a menos que violem alguma norma respeitante à concretização da decisão do doente ou à administração dos fármacos (vide, respetivamente, os artigos 8.º e 9.º do Decreto n.º 109/XIV). Seria

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