TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
60 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL da vida humana não permite dar uma resposta satisfatória, pois tende a impor um sacrifício da autonomia individual contrário à dignidade da pessoa que sofre, convertendo o seu direito a viver num dever de cum- primento penoso. Por isso mesmo, o legislador democrático não está impedido, por razões de constituciona- lidade absolutas ou definitivas, de regular a antecipação da morte medicamente assistida. 33. No entanto, na conformação de tal regulação, o legislador tem de observar limites, designadamente os que decorrem dos deveres de proteção dos direitos fundamentais que estão em causa na antecipação da morte medicamente assistida a pedido da própria pessoa. Para além da salvaguarda da voluntariedade da colaboração dos terceiros, maxime a possibilidade de os mesmos invocarem objeção de consciência, impõe-se a proteção da autonomia e da vida da própria pessoa que pretende antecipar a sua morte. Esta encontra-se numa posição vulnerável, razão acrescida por que deve ser defendida contra atuações precipitadas ou determinadas por pressões sociais, familiares ou outras. Está em causa a adoção de uma decisão cuja concretização se traduz num resultado definitivo e irreversível, pelo que a mesma só deve ser atendida desde que existam garantias suficientes de se tratar de uma genuína expres- são da autodeterminação esclarecida de quem a toma. Ora, é no quadro da definição de tais garantias que assume relevância a importância objetiva do bem vida. Com efeito, o Estado, nas suas diversas expressões institucionais e funcionais, não pode ser neutro no que à vida humana diz respeito: tem de a proteger e promover. No caso do acesso à morte medicamente assis- tida, esse esforço de proteção tem de partir da consideração da situação de vulnerabilidade e de sofrimento das pessoas que se decidem por tal prática. Além disso, do ponto de vista constitucional, a morte voluntária não é uma solução satisfatória e muito menos normal, pelo que não deve ser favorecida. O que deve promo- ver-se é antes a vida e a sua qualidade, até ao fim. Daqui decorre, com fundamento na dimensão objetiva do direito à vida consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, a imposição de adotar um sistema legal de proteção orientado para a vida. Independentemente da questão de saber se o direito ao livre desenvolvimento da personalidade do artigo 26.º, n.º 1, da Constituição constitui, atenta a sua necessária articulação com a importância e a consequente proteção qualificada devida à vida humana em função do artigo 24.º, n.º 1, do mesmo nor- mativo (cfr. supra os n. os 24, 25 e 26), fonte para um hipotético direito a uma morte autoconformada, na linha da jurisprudência Haas do TEDH ou, porventura, ainda mais radicalmente, na linha do decidido pelo Bundesverfassungsgericht (decisão de 26 de fevereiro de 2020) ou pelo Verfassungsgerichtshof (decisão de 11 de dezembro de 2020), é seguro que na ordem constitucional portuguesa o apoio de terceiros à morte, mesmo que autodeterminada, não representa um interesse constitucional positivo, salvo na medida em que esteja em causa a dignidade de quem, pretende (ser auxiliado a) morrer, isto é, a sua atuação como sujeito autorresponsável pelo seu próprio destino num momento já próximo do final. Trata-se de casos em que uma proibição absoluta da antecipação da morte com apoio de terceiros determinaria a redução da pessoa que pretende morrer, mas não consegue concretizar essa intenção sem ajuda, a um mero objeto de tratamentos verdadeiramente não desejados ou, em alternativa, a sua condenação a um sofrimento sem sentido face ao desfecho inevitável. Como linha de princípio orientadora – como diretriz – para a determinação dessas situações, dir-se-á que não está em causa uma escolha entre a vida e a morte, mas, mais rigorosamente, a possibilitação da escolha entre diferentes modos de morrer: nomeadamente, um processo de morte longo e sofrido versus uma morte rápida e tranquila. Em conformidade, e tendo em conta a inutilidade do sofrimento – ao menos da perspetiva de quem sofre – perante um desfecho certo, desde que verificado o pressuposto de uma decisão tomada em consciência, verdadeiramente livre de todas as pressões, e previamente informada do diagnóstico, do prognóstico e das alternativas disponíveis no domínio das terapias ou no âmbito dos cuidados paliativos, perde relevância saber quem detém o “domínio do facto” no momento final, o mesmo é dizer, recorrendo aos termos do Decreto n.º 109/XIV, se o ato de antecipação da morte se concretiza por via da autoadministração (ajudada) ou da heteroadministração de fármacos letais.
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