TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
59 acórdão n.º 123/21 previstos no artigo 2.º, n.º 1, continuar a ser possível invocar causas de justificação e de exculpação quanto a casos não previstos). 32. Sucede que a atuação dessa autonomia pessoal reconhecida pelo legislador implica a mencionada colaboração (voluntária) de terceiros. Aliás, um aspeto decisivo de tal reconhecimento consiste precisamente em não sujeitar o terceiro disponível para ajudar outrem a morrer – independentemente da modalidade concreta que a assistência revista: mera ajuda ou prática do ato causador da morte – à perseguição e punição criminal, que, não fora a cláusula excludente, deveria ocorrer. Com efeito, estão em causa situações em que só por via de tal exclusão é possível assegurar uma efetiva possibilidade de escolha a quem pretende decidir como e quando termina a sua vida. Mas a colaboração de um terceiro na disposição da vida de alguém é problemática, na medida em que converte essa disposição no resultado de uma interação social; já não está em causa apenas uma atuação individual de quem põe termo à sua própria vida (cfr. supra o n.º 29). Por isso aquela disposição da vida ganha relevância jurídica e entra em conflito com a indisponibilidade e a inviolabilidade da vida humana – dimensão objetiva do direito à vida consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição e fonte do dever esta- dual de proteção deste bem jurídico. Recorde-se que «a interferência do terceiro converte o facto num facto pertinente ao sistema social, estando como tal, exposto aos seus códigos e valorações» (vide Costa Andrade cit. supra no n.º 29), que, no caso português, e em homenagem à inviolabilidade da vida humana, impõem, em regra, a punição do terceiro por ilícitos próprios (concretamente: o homicídio a pedido da vítima e a ajuda ao suicídio). Ora, a opção do autor do Decreto n.º 109/XIV foi a de afastar os casos previstos na norma do respetivo artigo 2.º, n.º 1, de tais regras punitivas. Ciente da tensão entre o dever de proteção da vida e o respeito da autonomia pessoal em situações-limite de sofrimento, aquela opção funda-se numa conceção de pessoa própria de uma sociedade democrática, laica e plural dos pontos de vista ético, moral e filosófico. De acordo com tal conceção, o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias. O con- trário seria incompatível com a noção de homem-pessoa, dotado de uma dignidade própria, que é um sujeito autoconsciente e livre, autodeterminado e autorresponsável, em que se funda a ordem constitucional portu- guesa. Isto porque, como referem Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, «a absolutização da vida, traduzida na incriminação indiferenciada de todas as condutas eutanásicas, redundará inevitavelmente no esmagamento da autonomia de cada ser humano para tomar e concretizar as decisões mais centrais da sua própria existência. Ora, da circunstância de um direito fundamental como o direito à vida constituir uma conditio sine qua non de todos os demais direitos, não decorre de forma necessária a sua permanente superioridade axiológica sobre os restantes direitos […]» (Autores cits. Constituição…, cit. , anot. XXXI ao artigo 24.º, p. 540). Nesta mesma linha de abertura à salvaguarda da capacidade de autodeterminação inerente à dignidade humana de quem sofre, ou seja, de quem se encontra numa posição de vulnerabilidade, a Corte Costituzio- nale sustentou que, se um paciente é considerado capaz de tomar a decisão de pôr fim à própria existência através da interrupção de tratamentos de suporte à vida, não se compreenderia por que razão já deveria ser sujeito a uma proteção contra a própria vontade, quando essa decisão depende da ajuda de terceiros de forma a proporcionar uma alternativa que o paciente considera mais digna face à interrupção desses tratamentos. Daí a conclusão de que «a proibição absoluta da ajuda ao suicídio acabaria, assim, por limitar a liberdade de autodeterminação do paciente na escolha das terapias, incluindo aquelas destinadas a libertá-lo do sofrimento […], impondo-lhe, em última análise, uma única forma de se despedir da vida, sem que tal limitação possa considerar-se preordenada à tutela de um outro interesse constitucionalmente relevante, com a consequente lesão do princípio da dignidade humana» (vide a Ordinanza n.º 207/2018, de 24 de outubro de 2018, n.º 9; posteriormente confirmada pela Sentenza n.º 242/2019, de 25 de setembro de 2019, n.º 2.3, in fine ). A vulnerabilidade de uma pessoa originada pela situação de grande sofrimento em que se encontre pode criar uma tensão relativamente ao artigo 24.º, n.º 1, da Constituição devido à vontade livre e consciente de não querer continuar a viver em tais circunstâncias. E a uma tal tensão, a proteção absoluta e sem exceções
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