TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
58 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL por isso, com Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, quando afirmam que, não sendo o direito à vida «um direito ilimitado ou absoluto, imune a situações de delicadas colisões de direitos […], não deixa, entretanto, de ser um direito que beneficia a priori de uma posição muito vantajosa na ordem flexível e não hierárquica da axiologia constitucional» (vide Constituição…, cit., anot. IV ao artigo 24.º, p. 502). 31. No Decreto n.º 109/XIV, a exclusão da punibilidade da antecipação da morte medicamente assis- tida, verificadas determinadas condições (ou critérios) materiais e com observância do procedimento aí disciplinado, coexiste com a continuação da punibilidade da morte a pedido da vítima e da ajuda ao suicídio (cfr. o artigo 27.º do Decreto, na parte em que adita um novo número aos artigos 134.º e 135.º do Código Penal). Esta opção mostra que o fim prosseguido pelo legislador – deixando de lado o aspeto prestacio- nal relacionado com a possibilidade de antecipação da morte medicamente assistida no âmbito do Serviço Nacional de Saúde – é duplo: i) criar condições para que as pessoas em determinadas situações de sofrimento intolerável possam, se assim o desejarem, antecipar a sua morte em segurança mediante a colaboração volun- tária de médicos e outros profissionais de saúde; ii) dar aos profissionais de saúde que não tenham problemas de consciência em intervirem na antecipação da morte de uma pessoa que se encontre em determinadas situações de sofrimento intolerável e a pedido da mesma a certeza de que não serão punidos. Com efeito, sem uma norma como a do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV – e as demais que dela decorrem diretamente, como as alterações ao Código Penal – as práticas de eutanásia ativa direta ou de ajuda ao suicídio relativamente a pessoas – por exemplo, doentes terminais – em situações extremas e de grande sofrimento só não seriam punidas criminalmente, caso fosse reconhecido, em concreto, que o agente atuara em estado de necessidade (desculpante), em termos de se justificar uma dispensa de pena (cfr. o artigo 35.º, n.º 2, do Código Penal). Recorde-se que foi esse o caminho seguido nos Países Baixos até à aprovação, em 2001, da legislação que despenalizou e regulou a eutanásia ativa e o suicídio assistido (cfr. supra o n.º 27.1). Porém, como é fácil de compreender, em tais circunstâncias, «o caminho para a não punibilidade do agente é viável, mas está cheio de dificuldades de percurso e, em consequência, de incertezas quanto ao resultado final. […Em tais situações o percurso é] muito incerto quanto aos seus resultados, do que deriva a impossi- bilidade de os médicos, sobretudo aqueles que convivem diariamente com os limites da vida, encontrarem nas normas penais um esteio claro e seguro pelo qual possam conformar a sua atuação» (cfr. Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, Constituição…, cit., anot. XXX ao artigo 24.º, p. 537). Mas tal insegurança acaba por atingir negativamente também os próprios doentes, na medida em que se veem privados, frequentemente em situações-limite de grande sofrimento físico e angústia existencial, de uma escolha que, na sua ótica, os poderia libertar. Para eles, a liberdade de morrer com a ajuda profissional e qualificada de um terceiro poderá significar um último reduto da sua autonomia pessoal, a última possi- bilidade de poderem tomar uma decisão central para a respetiva existência. E, um dos objetivos subjacentes à norma do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto é, claramente, a de, em condições controladas e materialmente justificadas na ótica da pessoa em sofrimento, conferir-lhe a liberdade de escolher morrer com a assistência – considerando aqui a autoadministração acompanhada e supervisionada de fármacos letais ou a heteroad- ministração dos mesmos fármacos, a seu pedido – qualificada de terceiros sem os sujeitar a uma ação penal. Assumindo que a antecipação da morte não deve ser banalizada nem normalizada – mantendo por isso a incriminação da morte a pedido e da ajuda ao suicídio para a generalidade dos casos – mas reconhecendo igualmente existirem situações mais ou menos típicas em que a aquela pode ser justificada – e já hoje deve ser desculpada – terá o legislador, por via do referido artigo 2.º, n.º 1, procurado excluir a punibilidade da mesma em situações que se lhe afiguravam mais gravemente contrárias à autonomia individual da pessoa em sofrimento, relativamente à adoção e concretização de uma decisão central na existência de qualquer ser humano e, por conseguinte, também relevante quanto à sua dignidade como pessoa. Por outras palavras, o autor do Decreto n.º 109/XIV optou por tentar a generalização de soluções casuísticas consideradas jus- tas e razoáveis, disciplinando-as normativamente (sem prejuízo de, mesmo para além dos limites materiais
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