TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
54 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL o problema de saber se o dever de a proteger se impõe ao próprio indivíduo (dever de viver), negando assim um direito ao suicídio […]. Trata-se de saber se a vida, como base e expressão da existência humana, está na disponibilidade do próprio titular» (vide Autores cits., Constituição…, cit., anot. VII ao artigo 24.º, p. 450). Na ordem jurídica portuguesa, os valores da liberdade geral de ação e da capacidade de autodetermi- nação individual encontram-se particularmente refletidos no direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, claramente inspirado no direito correspon- dente previsto no Artigo 2.º (1) da Grundgesetz , o qual, de acordo com a doutrina e jurisprudência alemãs, compreende duas diferentes vertentes: o direito geral de personalidade e a liberdade geral de ação. A doutrina portuguesa tem também vindo a acentuar as dimensões de liberdade e de autodeterminação que se encontram associadas a este direito. Como escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira relativamente ao mesmo: «na qualidade de expressão geral de uma esfera de liberdade pessoal, ele constitui um direito sub- jetivo fundamental do indivíduo, garantindo-lhe um direito à formação livre da personalidade ou liberdade de ação como sujeito autónomo dotado de autodeterminação decisória, e um direito de personalidade fun- damentalmente garantidor da sua esfera jurídico-pessoal e, em especial, da integridade deste» (Autores cits., Constituição…, cit., anot. III ao artigo 26.º, pp. 463-464). Os mesmos Autores acrescentam que o âmbito normativo de proteção deste direito compreende três dimensões: 1) a formação livre da personalidade, sem planificação ou imposição estatal de modelos de personalidade; 2) a proteção da liberdade de ação de acordo com o projeto de vida, vocação e capacidades pessoais próprias; e 3) a proteção da integridade da pessoa em vista a garantir a esfera jurídico-pessoal no processo de desenvolvimento ( ibidem ). Em sentido próximo, Rui Medeiros e António Cortês salientam que aquele direito compreende uma tutela abrangente da personalidade enquanto substrato da individualidade (nos seus diversos aspetos) e uma tutela da liberdade (Autores cits., Constituição… , cit., anot. XIV ao artigo 26.º, p. 614). Estes Autores assi- nalam ainda a interligação que se verifica entre o direito em apreço e outros direitos e interesses constitucio- nalmente tutelados, afirmando que «o respeito pela dignidade humana, pelo pluralismo democrático, pela identidade pessoal e pelo desenvolvimento da personalidade de cada um implica o reconhecimento de um espaço legítimo de liberdade e realização pessoal liberto de constrangimentos jurídicos» ( ibidem ). A mencionada liberdade geral de ação traduz-se essencialmente num espaço próprio de autonomia que confere a cada pessoa a liberdade de conduzir a sua própria existência de acordo com as características especí- ficas da sua personalidade e do seu projeto de vida. Como este Tribunal já frisou a propósito de tal dimensão, a mesma consiste numa «liberdade de exteriorização da personalidade ou liberdade de ação de acordo com o projeto de vida e a vocação e capacidades pessoais próprias» (Acórdão n.º 225/18), assegurando-se «a cada um a liberdade de traçar o seu próprio plano de vida» (Acórdão n.º 288/98). Já a capacidade de autodeter- minação traduz-se essencialmente num espaço próprio de autonomia decisória que confere a cada pessoa a liberdade de fazer escolhas relevantes para a sua vida enquanto ser racional e o ónus de assumir a responsabi- lidade pelas mesmas. Também esta vertente tem vindo a ser enfatizada na jurisprudência constitucional e na doutrina, que a descrevem como a «liberdade de ação necessária à autoconformação da identidade própria de um sujeito autodeterminado» (Acórdão n.º 225/18), ou ainda a como a «liberdade de ação como sujeito autónomo dotado de autodeterminação decisória» (vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição…, cit., anot. III ao artigo 26.º, p. 463). Estas duas dimensões do direito ao desenvolvimento da personalidade conferem a cada pessoa o poder de tomar decisões cruciais sobre a forma como pretende viver a própria vida e, por inerência, a forma como não a pretende continuar a viver. O espaço irredutível de autonomia individual para conduzir a sua própria existência de acordo com as características específicas da sua personalidade e o seu projeto de vida decorrente da liberdade geral de ação pode, assim, integrar um projeto de fim de vida delineado em função das conce- ções e valorações relativas ao significado da própria existência para cada pessoa. Por sua vez, a liberdade de cada um fazer escolhas relevantes para a própria vida enquanto ser dotado de racionalidade e de responsabi- lidade, que é própria da autonomia decisória, também pode proteger a decisão de uma pessoa pôr termo à própria vida, desde que tomada de forma capaz, livre, consciente e esclarecida.
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