TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
51 acórdão n.º 123/21 ser privado da vida» –, tem associado um «conteúdo objetivo da proteção do bem da vida humana [que] implica, de forma incontornável, o reconhecimento do dever de proteção do direito à vida, quer quanto ao conteúdo e extensão, quer quanto às formas e meios de efetivação desse dever» (assim, vide Gomes Cano- tilho e Vital Moreira, Constituição…, cit., anots. I e III ao artigo 24.º, p. 447). Ora, é no plano da atuação deste dever – que é de promoção e proteção – nos diversos domínios do agir humano que frequentemente surge a necessidade de compromissos e de concordâncias práticas justificativa de margens de liberdade de conformação legislativa mais ou menos amplas (nesse sentido, Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, ibidem ; Gomes Canotilho e Vital Moreira, no local cit., referem também as «delicadas questões relacionadas com a autonomia da pessoa», exemplificando com o “direito ao corpo”, o suicídio, a colocação da vida em perigo, o consentimento de tratamentos médicos ou a “liberdade de morrer”). A eutanásia e o suicídio medicamente assistido são dois campos problemáticos em que tal tensão se torna particularmente visível e aguda, como é evidenciado pelas experiências de direito comparado e pela jurisprudência, seja de tribunais constitucionais, seja de tribunais internacionais. 27. Com efeito, independentemente das formulações mais ou menos expressivas, a verdade é que o direito à vida é objeto de um reconhecimento jurídico universal. Mas esta universalidade não impede a con- sagração de soluções muito diferenciadas quanto à matéria da morte medicamente assistida. No plano do direito comparado, é possível encontrar três grandes tendências: i) a despenalização e a regulação expressa da eutanásia ativa e, ou, do suicídio assistido (Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo, Canadá, alguns Estados dos Estados Unidos da América, Colômbia, Estado australiano da Victória e Nova Zelândia); ii) a tolerância relativamente ao suicídio assistido, sem que lhe seja conferida uma regulação legal expressa (Alemanha, Itália, Suíça); e iii) a proibição da eutanásia ativa e do suicídio assistido ( v. g. França e Reino Unido, entre muitos outros). 27.1. Atualmente, no continente europeu, apenas nos três Estados do Benelux vigora legislação que despenaliza e regula a eutanásia ativa e, ou, o suicídio assistido. A legislação foi criada em 2002 (nos Países Baixos e na Bélgica) e em 2009 (no Luxemburgo). Em Espanha, o Congresso dos Deputados aprovou, em 17 de dezembro de 2020, uma proposta de lei orgânica sobre a regulação da eutanásia, e que se encontra em apreciação no Senado, a qual contempla a legalização e a regulação da eutanásia (ativa e direta) e o suicídio assistido, sob a denominação de prestação de ajuda para morrer – configurada como um direito a solicitar e a receber tal prestação. Os Países Baixos, em abril de 2002, tornaram-se no primeiro Estado a nível europeu a despenalizar e a regular a eutanásia ativa e o suicídio assistido, na sequência da entrada em vigor da Lei sobre o Termo da Vida a Pedido e Suicídio Assistido (Procedimento de Avaliação), aprovada em abril de 2001. Esta lei intro- duziu alterações aos artigos do Código Penal que criminalizavam o homicídio a pedido e a ajuda ao suicídio (artigos 293.º e 294.º) procedendo à despenalização destas condutas, quando praticadas por um médico de acordo com o regime nela previsto. A aprovação da lei em causa constituiu o culminar de um longo debate que se verificou durante várias décadas na sociedade holandesa, particularmente impulsionado por vários casos mediáticos discutidos na jurisprudência. Efetivamente, desde o início da década de 70 que os tribunais holandeses tinham vindo a demonstrar abertura a situações de eutanásia ativa e de suicídio assistido, tendo começado por aplicar sanções penais simbólicas aos agentes deste tipo de crimes e passado, numa segunda fase, a excluir a sua responsabili- dade penal através da aplicação da figura do estado de necessidade. Nessa medida, a despenalização e regula- ção da eutanásia ativa e do suicídio assistido por via legal não constituiu propriamente um ponto de viragem no ordenamento jurídico holandês, pois teve primordialmente o efeito de cristalizar, a nível normativo, uma prática que já vinha a ser aceite, há muito, pela jurisprudência. Na Bélgica, o ordenamento jurídico admite, na senda dos Países Baixos, a eutanásia ativa desde a aprova- ção da Lei de 28 de maio de 2002. A regulação da morte assistida no ordenamento jurídico belga conheceu
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