TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
50 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL dos direitos do doente do Parlamento Europeu, de 19/01/84). A Constituição não reconhece qualquer “vida sem valor de vida”, nem garante decisões sobre a própria vida» (v. ob. cit. , anot. VII ao artigo 24.º, p. 450). 26. A peculiar feição do direito à vida, traduz-se em «[apresentar-se] em regra como um direito de tudo ou nada – no sentido de que não são concebíveis ataques parcelares à vida sem perda dessa mesma vida – avesso a operações de concordância prática e cujo conteúdo tende a coincidir com o seu conteúdo essencial» (assim, Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, Constituição…, cit ., anot. IV ao artigo 24.º, p. 502). Contudo, essa proteção sendo especialmente qualificada, próxima até da ideia de absolutização, não tem exatamente esse significado – entendendo-se por ser absoluto, no que a um direito diz respeito, a ideia, radicada na eti- mologia latina da palavra ( solutus ), de libertação deste de condições, exceções ou quaisquer margens de pon- deração, expressando uma coincidência exata, rectius , uma total sobreposição, entre o conteúdo do direito e a extensão da proteção que o mesmo confere. Assim se compreende que a opção constitucionalmente sedeada de libertar um direito de quaisquer con- dicionantes ou margens de ponderação – a opção pela absolutização da inviolabilidade deste – se expresse, numa língua com a riqueza e a precisão do alemão, pela expressão unantastbar (empregue no Artigo 1. (1) da Grundgesetz , relativo à dignidade da pessoa humana: Die Würde des Menschen ist unantastbar ), com o signifi- cado mais preciso de intangibilidade, ao passo que a afirmação, nesse contexto linguístico, da inviolabilidade de um direito se expresse – como sucede no Artigo 2. (2) do mesmo normativo – pela expressão unverletzlich , que exatamente corresponde a inviolabilidade (o significado desta diferenciação linguística na Grundgesetz é explicitado por Dieter Grimm, “Dignity in a Legal Context: Dignity as an Absolute Right” in C hristopher McCrudden (ed.), Understanding Human Dignity, Oxford University Press, Oxford, 2014, p. 387). Claro que a “intangibilidade”, referida a um contexto significativo muito aberto (dignidade), com raízes teológicas e filosóficas muito marcadas e tributário – é esse o contexto histórico da Grundgesetz – de aconteci- mentos históricos fortemente traumáticos, conduz a margens de indefinição apreciáveis que o tornam menos operante em contextos de argumentação jurídico-constitucional, onde pode, consistentemente, ser invocado em lados opostos do debate («[t]alvez a expressão dignidade signifique, neste contexto, muitas coisas diferen- tes e contraditórias para assumir um papel clarificador nesta discussão. Pessoas favoráveis à eutanásia falam da morte com dignidade, enquanto os seus oponentes argumentam que é precisamente a dignidade que impede a morte de alguém nesse contexto»; assim, Alan Mittleman, “Two or Three Concepts of Dignity” in JRB, Summer, 2013). Como, referindo-se à mesma questão, é sublinhado por Ronald Dworkin, «[d]ignidade – que significa respeitar o valor inerente às nossas próprias vidas – constitui o cerne de ambos os argumentos» (vide Autor cit., Life’s Dominion: An Argument About Abortion, Euthanasia, and Individual Freedom, Vintage Books , New York, 1994, p. 238). Esta caraterística reflete, todavia, a força essencial da ideia de dignidade humana alcandorada à categoria de princípio, que exige uma abrangência qualificada, um metaprincípio, particularmente adequado a inferências reflexas (assim, Jorge Miranda e António Cortês in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição…, cit. [reimpr.], anotação ao artigo 1.º, p. 65). No caso do artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, o grau superior de qualificação assumido pela afirmação enfática da inviolabilidade da vida humana, exige um nível protetivo congruente com a forte identidade axiológica que o caracteriza. Isso não exclui em absoluto, porém, a consideração de fatores de ponderação que permitam dar resposta, na projeção dessa inviolabilidade, a circunstâncias especiais – neste caso muito especiais – que devam ser efetivamente consideradas em contextos consistentemente desafiantes em que os pressupostos da absolutização – a “libertação” de quaisquer condições ou espaços de ponderação – são testa- dos ao limite, exigindo respostas nem sempre acomodáveis à projeção de uma rigidez levada ao paroxismo. Na verdade, como tem sido sublinhado, a «posição original que o direito à vida ocupa entre os demais direitos» também constitui uma fonte de dificuldades que não se deixam resolver pela mera «afirmação da aplicabilidade direta do artigo 24.º, associada à crença (quase se diria ingénua) na exequibilidade da norma constitucional em causa» (cfr. Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, Constituição…, cit., anot. IV ao artigo 24.º, p. 502). Tal direito, para além da sua dimensão subjetiva – «o direito de não ser morto, de não
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