TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
424 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL A dificuldade está, porém, em encontrar o critério à luz do qual se possa determinar que dimensões do direito constitucional de propriedade privada devem beneficiar do regime específico dos direitos, liberdades e garantias. A orientação que tem vindo a ser seguida é a de limitar a natureza análoga às dimensões que consubstanciem «aquele “radical subjetivo” que o aproxima dos direitos fundamentais subjetivos de tipo clássico, negativos, diretamente invocáveis» (Parecer n.º 32/82 da Comissão Constitucional); «que são verdadeiramente significativas e determi- nantes da sua caracterização como garantia constitucional» (Acórdãos n. os 404/87, 194/89 e 195/89); que sejam «essenciais à realização do Homem como pessoa» (Acórdãos n. os 329/99 e 187/01); ou que se mostrem indispensá- veis à conceção do direito de propriedade como garantia de “espaço de autonomia pessoal” (Acórdão n.º 374/03). Desse núcleo, dessa dimensão que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, faz, seguramente, parte o «direito de cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública – e, ainda assim, tão-só mediante o pagamento de justa indemnização» (Acórdãos n. os 329/99, 377/99, 517/99, 187/01, 159/07 e 421/09). Na verdade, a dimensão de proteção contra a privação da propriedade – ínsita nos n. os 1 e 2 artigo 62.º da CRP, relativamente à requisição e à expropriação, mas que também pode abranger outros atos ablativos (Acórdãos n. os 391/02, 491/02 e 159/07) – não pode deixar de integrar o conteúdo da propriedade que o legislador não pode desvirtuar, sob pena de não respeitar o mínimo da liberdade de apropriação que permita o desenvolvimento da personalidade individual. A garantia de permanência da propriedade não é, porém, a única dimensão do direito constitucional de propriedade a que poderá ser reconhecida natureza análoga a direitos, liberdades e garantias. Apesar do direito à justa indemnização, consagrado no n.º 2 do artigo 62.º, ser a única dimensão a que o Tribunal tem reconhecido natureza análoga, «outras dimensões do direito de propriedade, essenciais à realização do Homem como pessoa (…), podem, eventualmente, ser reconhecida natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias» – como se disse no Acórdão n.º 187/01. Assim, os poderes e faculdades que sejam essenciais à garantia de um “espaço de autonomia pessoal” (Acórdão n.º 374/03) justificam a respetiva qualificação como direitos, liberdades e garantias de natureza análoga. A efeti- vidade dessa garantia não pode estar na dependência da intervenção do legislador, já que não se deve «perder de vista que a dependência de lei que caracteriza a propriedade não significa que a própria proteção constitucional da propriedade fique refém da lei. Por isso, nem todas as intervenções do legislador em matéria de concretização do conteúdo dos direitos patrimoniais são simples determinações do seu conteúdo, podendo ocorrer verdadeiras restrições, que assim ficam sujeitas ao regime mais exigente das leis restritivas» (Rui Medeiros, ob. cit. p. 1257). E não pode, na verdade, deixar de concluir-se que o direito constitucional de propriedade integra poderes e faculdades subjetivas intangíveis, através da abstenção do legislador. Como refere Miguel Nogueira de Brito, «os direitos de conteúdo patrimonial adquiridos com base na lei são protegidos contra posteriores lesões pelo poder público do Estado, efetuadas designadamente através da lei, sem que isso envolva qualquer resultado paradoxal. Enquanto direito fundamental, isto é, direito subjetivo dos indivíduos, o artigo 62.º, n.º 1, garante a estes a exis- tência de bens e direitos em face do poder do Estado, nos termos em que eles foram adquiridos, em conformidade com as normas vigentes no momento relevante» ( ob. cit. , pp. 852 e 853). 14. Para além do direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade, a relação privada protegida pelo n.º 1 do artigo 62.º da CRP compreende (i) o direito de aceder à propriedade, (ii) o direito à transmissão da propriedade inter vivos ou mortis causa , (iii) e a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário. Enquanto os dois primeiros estão expressamente enunciados na norma do n.º 1 daquele artigo, o direito ao uso e fruição está implícito na garantia constitucional, já que a garantia de existência de propriedade, entendida como expressão de liberdade individual, só ganha sentido se for acompanhada da possibilidade de aproveitamento livre dos bens, no interesse do respetivo titular.» 14.2. A invocação pelo recorrente de uma restrição ilegítima e não consentida pelo artigo 18.º da Constituição ao seu direito de propriedade (artigo 62.º da CRP) faz apelo à assinalada dimensão análoga aos direitos, liberdades e garantias, cuja verificação cumpre primeiramente esclarecer. Prima facie , a pretensão do recorrente de impedir a renovação do contrato de arrendamento, recuperando o gozo do locado de que é proprietário, pode ainda ser compreendida como uma faceta defensiva do direito de
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