TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

423 acórdão n.º 115/21 social da propriedade contida no artigo 62.º da CRP possibilita ao legislador ordinário tomar em consideração interesses dos não proprietários contrapostos aos interesses dos proprietários, modelando ou restringindo o direito de propriedade de acordo com parâmetros constitucionais pertinentes. Como sintetiza o Acórdão n.º 148/05: «O próprio projeto económico, social e político da Constituição implica um estreitamento do âmbito de poderes tradicionalmente associados à propriedade privada e a admissão de limitações ou condicionamentos, quer a favor do Estado ou da coletividade, quer a favor de terceiros, das liberdades de uso, fruição e disposição (cfr., de entre outros, Acórdão n.º 866/96, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 34.º, pp. 53 e segs.)». 13. A dimensão objetiva da garantia constitucional da propriedade privada não deve, porém, ser sobrevalori- zada à custa da dimensão individual ou subjetiva. Como refere Rui Medeiros, «a Constituição protege a proprie- dade privada porque a encara como um espaço de autonomia pessoal, isto é, como um instrumento necessário para a realização de projetos de vida livremente traçados, responsavelmente cumpridos, e que não podem nem devem ser interrompidos ou impossibilitados por opressivas ingerências externas» ( ob. cit. , p. 901) – não se esvaziando por isso a dimensão jus-subjetiva da garantia constitucional da propriedade privada. E isto justamente porque através da propriedade privada confere-se aos indivíduos um conjunto indefinido de poderes e faculdades, incluindo poderes de transmissão, que aumentam as suas possibilidades de atuação. Desse modo, a garantia constitucional da propriedade privada cumpre a função de assegurar ao respetivo titular um espaço de liberdade na esfera jurídico-patrimonial, através do reconhecimento de pretensões jurídicas individuais de uso, aproveitamento e fruição, numa base exclusiva, possibilitando, assim, uma formação responsável da vida. Enquanto direito fundamental, o artigo 62.º, n.º 1, da CRP, garante às pessoas «a existência de bens e direitos em face do poder do Estado, nos termos em que eles foram adquiridos, em conformidade com as normas vigentes no momento relevante»; e a garantia de existência da propriedade – e a sua utilização e disposição – significa que a «uma posição jurídica de direito privado é associado um direito subjetivo público de defesa ou manutenção dessa posição (Miguel Nogueira de Brito, A justificação da propriedade privada numa democracia constitucional, Coimbra, 2007, pp. 846 e 852). Por conseguinte, atenta a dimensão de espaço de liberdade e autonomia individual, de liberdade geral de ação do proprietário face aos poderes públicos (artigo 26.º, n.º 1, da CRP), o direito de propriedade privada configura um direito de defesa, com estrutura análoga à dos direitos, liberdades e garantias. Em jurisprudência constante, o Tribunal tem dito que, «sendo afinal a “propriedade” um pressuposto da autonomia, não obstante a inclusão do direito que lhe corresponde no título respeitante aos “Direitos e deveres económicos, sociais e culturais”, alguma dimensão terá ele que permita a sua inclusão, pelo menos parcial, nos clássicos direitos de defesa, ou para usar a terminologia da CRP, em alguma da sua dimensão será ele análogo aos chamados direitos, liberdades e garantias» (Acórdão n.º 421/09 e jurisprudência aí citada). De facto, desde há muito que é consensual na doutrina e na jurisprudência a qualificação do direito de pro- priedade privada como direito, liberdade e garantia de natureza análoga. Mas também é pacífico que o direito fundamental de propriedade não abrange todos e quaisquer poderes e faculdades de uso, fruição e disposição dos bens, mas apenas aquelas dimensões que sejam essenciais à realização da autonomia do homem com pessoa. Nesse sentido, Luís Cabral de Moncada refere que «existe efetivamente uma barreira subjetiva da propriedade privada verdadeiramente indestrutível, composta por um conjunto de poderes e faculdades sobre bens que se afiguram indispensáveis ao livre desenvolvimento da personalidade humana» ( Direito Económico, 2.ª edição, Coimbra Edi- tora, p. 155). Ora, é apenas a essas dimensões análogas que se aplica, nos termos do artigo 17.º da Constituição, o regime dos direitos, liberdades e garantias, nomeadamente quanto aos requisitos a que se sujeitam as leis que os restrin- jam, contidos no artigo 18.º. Como se diz no Acórdão n.º 425/00, «embora seja indiscutível que o direito de propriedade, no seu núcleo essencial, é um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, as condições consti- tucionalmente exigidas para as leis restritivas apenas valem nesse domínio na dimensão em que o direito tiver essa natureza análoga».

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