TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

375 acórdão n.º 102/21 A razão para esta conceção é simples: na valoração axiológica subjacente à configuração do direito ao recurso consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da CRP que aqui se adota, assume fundamental importância a diferença existente entre o status jurídico de inocente (que persiste até ao momento da condenação, em concretização do princípio da presunção de inocência) e culpado. A transposição dessa fronteira, por ação de um órgão de soberania – no caso, um Tribunal da Relação – comporta uma alteração de significativa relevância para a pessoa do condenado, quer num plano interno (da relação de cada cidadão consigo mesmo, do desenvolvimento da sua identidade e personalidade, direitos fundamentais pessoais, nos termos do artigo 26.º, n.º 1, da CRP), como num plano externo (o da relação com os seus concidadãos e com o Estado, no qual releva o direito ao bom nome e reputação, também protegido pelo n.º 1 do artigo 26.º da CRP). Assim, é o grau de afetação de diversos direitos fundamentais por efeito da condenação penal em si mesma que justifica a afirmação da existência de um direito ao próprio recurso em caso de condenação, entendido como regra e decorrente do disposto no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição; mas é, igualmente, a gravidade dessa situação que permite distingui-la de todas as outras, conduzindo a uma circunscrição clara – e muito restrita – do alcance desta dimensão nuclear do direito fundamental em causa, deixando todas as outras, nos termos acima explicados, no espaço da concordância prática. Ora, se quanto ao teor da condenação pode entender-se já ter tido o arguido a possibilidade de se pronunciar, nas contra-alegações do recurso que ori- gina a decisão do Tribunal da Relação, o mesmo não sucede quanto à determinação da pena e da sua medida concreta, que sempre constituirão elemento novo, relativamente ao qual impõe a constituição que lhe seja dada oportunidade de defesa. 14. Esta conceção é, aliás, coerente com aquela que tem sido a posição do Tribunal Constitucional em matéria de direito ao recurso e/ou ao duplo grau de jurisdição em matéria de direitos fundamentais, plasmada nos Acórdãos n. os  40/08, 44/08 e 197/09. No primeiro dos acórdãos citados, o Tribunal afirma que “é sustentá- vel que, sendo constitucionalmente assegurado o acesso aos tribunais contra quaisquer atos lesivos dos direitos dos cidadãos ( maxime dos direitos, liberdades e garantias), sejam esses atos provenientes de particulares ou de órgãos do Estado, forçoso é que se garanta o direito à impugnação judicial de atos dos tribunais (sejam eles decisões judiciais ou atuações materiais) que constituam a causa primeira e direta da afetação de tais direitos. Considera-se, pois, que quando uma atuação de um tribunal, por si mesma, afeta, de forma direta, um direito fundamental de um cidadão, mesmo fora da área penal, a este deve ser reconhecido o direito à apreciação judi- cial dessa situação. Mas quando a afetação do direito fundamental do cidadão teve origem numa atuação da Administração ou de particulares e esta atuação já foi objeto de controlo jurisdicional, não é sempre constitu- cionalmente imposta uma reapreciação judicial dessa decisão”. Este mesmo critério decisório – nos termos do qual deverá haver recurso quando uma atuação de um tribunal, por si mesma, afeta, de forma direta, um direito fundamental de um cidadão – foi reafirmado nos Acórdãos n.º 44/08 e n.º 197/09. Ora, a posição que agora se assume é corolário desta, tendo especial força no plano lógico-argumentativo por se encontrar dentro da esfera do processo penal, no âmbito do qual são mais relevantes os argumentos no sentido da existência de um direito ao recurso, autónomo em relação ao duplo grau de jurisdição. Sendo a condenação penal, como se explicou, fortemente lesiva de um conjunto de direitos fundamentais (e mesmo que no conjunto destes se não conte o direito à liberdade), não se vê como possa ser conforme ao ordenamento jurídico-constitucional a subsistência de uma tal decisão, sem possibilidade de reapreciação jurisdicional, pelo menos na parte relativa à determinação da pena e sua medida concreta, em relação à qual, pela própria natureza do processo, o arguido obviamente nada pôde argumentar junto do tribunal. 15. Outros argumentos, de ordem tanto prática como dogmática, são também aventados na defesa da não inconstitucionalidade da solução normativa questionada no presente processo. Assim, no específico caso dos autos, poder-se-ia dizer que a restrição da possibilidade de recurso não seria suscetível de afetar o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido, já que, enquanto pena de substituição (da prisão), a suspensão de execução da prisão constitui verdadeira pena autónoma – e não uma condenação

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