TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

374 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Ora, do ponto de vista abstrato-normativo, estamos, precisamente, perante uma situação como a que deu origem ao Acórdão n.º 31/20, ou seja, a conversão – mesmo que parcelar – de uma decisão absolutória numa condenação inovatória (em concreto, quanto à espécie e medida concreta da pena aplicável ao novo ilícito penal dado como praticado), relativamente à qual o recorrente não pode defender-se. Entende-se, por isso, ser de reiterar o juízo alcançado naquele aresto, afirmando, uma vez mais, o argumento que constitui o seu principal pilar argumentativo: o de que o direito fundamental ao recurso é, em circunstâncias como as descritas, condição indispensável para um exercício efetivo das garantias de defesa em processo penal cons- titucionalmente consagradas. Assim, cumpre reconhecer que ao presente arguido que foi condenado, pela primeira vez nos referidos termos, pelo TRG, e não pôde ver reexaminada tal condenação inédita – nem o consequente agravamento do conteúdo e do quantum da pena a cumprir –, foi suprimido o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, com sacrifício dos direitos, liberdades e garantias de que é titular, em especial o catálogo de meios de defesa. Essa restrição total, com prejuízo da possibilidade de concretização da tutela jurisdicional efetiva, afigura-se, pois, incompatível, na senda do Acórdão trazido à colação, com os parâmetros perfilhados pela Constituição da República Portuguesa. 13. Não se ignora, naturalmente, a existência de argumentos relevantes no sentido de sustentar a posi- ção contrária, em linha com a jurisprudência tradicional deste Tribunal Constitucional. O primeiro desses argumentos faz equivaler a solução adotada no Acórdão n.º 31/20 – e que, como já se anunciou, aqui se seguirá – a uma absolutização do direito ao recurso previsto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição: tal direito ficaria, desta forma, imune a restrições legais e, consequentemente, excluído da possibilidade de ponderação com outros bens ou direitos constitucionais. Esta crítica tem um elemento de verdade, mas atribui à posição jurisprudencial que aqui faz vencimento um alcance que ela não tem. Assim, a conceção acerca dos direitos fundamentais que subjaz a esta orientação tem em consideração que, ainda que a título excecional, há “situações em que a própria Constituição garante uma faculdade, uma garantia, uma pretensão ou uma faceta particular do direito, mas já a título definitivo, absoluto, ou seja, o legislador constituinte fez logo ali, ele mesmo, todas as ponderações que havia a fazer e decidiu-se inten- cionalmente pela garantia, a título definitivo, do interesse jusfundamental em questão” (cfr. J. Reis Novais, Direitos Fundamentais: Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, 2006, pp. 51). Não se pretende, com isto, erigir o direito ao recurso (ou, porventura, outro direito fundamental), em quaisquer casos, num valor absoluto, imune a conformação por parte do legislador democrático ou, até, a restrições. Contudo, admite-se que, em circunstâncias bem delimitadas, as normas de direitos fundamentais possam ter a natureza de regras. Nestes termos, o direito constitucional ao recurso, em processo penal, comporta uma irredutível dimen- são de proteção do cidadão, em face do exercício do poder punitivo estadual, que fica, efetivamente, fora da esfera de exercício, por parte do legislador democrático, do poder de concordância prática entre distintos bens axiologicamente relevantes do ponto de vista constitucional. No entanto, essa dimensão é muitíssimo reduzida: limita-se ao direito a recorrer de decisão condenatória inédita, que implica a determinação da pena e da sua medida concreta. Não estão, pois, aqui abrangidas todas as decisões em matéria penal; nem mesmo todas as decisões tomadas em sede de recurso em processo penal que sejam desfavoráveis ao arguido, como o aumento da pena originalmente fixada pelo tribunal de 1.ª instância, a alteração em sentido mais gravoso dos termos da sua execução, ou a substituição de pena não privativa da liberdade por pena de prisão. Em todas essas circuns- tâncias, que se situam além do núcleo irredutível do direito ao recurso, haverá amplo espaço para ponderações e para a mobilização do princípio da proporcionalidade como parâmetro de legitimidade constitucional. Por outro lado, tampouco se impede a modelação, por via legislativa, do direito ao recurso em processo penal, nos casos em que a Constituição impõe a sua existência. Ou seja, nada obsta a que o legislador desenhe mecanismos processuais específicos – e distintos – para diferentes situações, tendo em conta a necessidade de compaginação com outros bens constitucionalmente protegidos, como a segurança jurídica, a celeridade processual, a proteção das vítimas ou a organização do sistema judiciário.

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