TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
36 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL unidade teleológica impeditiva de uma segmentação – ou “fatiamento” – em que cada uma das condições (cumulativas) de acesso – ou critérios – à antecipação da morte medicamente assistida pudesse adquirir um sentido normativo autónomo suscetível de ser considerado isoladamente. A eliminação de uma ou mais dessas condições implicaria, na verdade, a transformação da norma cons- tante do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV num aliud : a referida linha divisória da esfera ilícito-lícito não só passaria a ser outra – nomeadamente em função do pressuposto ou critério que tivesse sido eliminado –, como, sobretudo, passaria a obedecer a uma diferente teleologia. Ora, tal como não seria concebível em sede de fiscalização abstrata sucessiva que, na eventualidade de um juízo positivo de inconstitucionalidade parcial incidente sobre apenas um desses critérios ou condições, a norma pudesse continuar a vigorar expur- gada do critério então considerado inconstitucional – sob pena de ser o Tribunal a redesenhar ele próprio, por via da sua decisão, uma nova fronteira e, assim, uma nova norma –, nesta sede de fiscalização preventiva, a apreciação a realizar pelo Tribunal também não pode deixar de considerar a norma na sua unidade teleoló- gica e a consequente união incindível dos elementos da sua previsão. Deste modo, por razões de ordem teleológica – designadamente a mencionada redefinição da fronteira entre o que deixou de ser ilícito para passar a ser lícito em matéria de colaboração ou intervenção voluntária na antecipação da morte de uma pessoa, a seu pedido – a previsão da norma constante do citado artigo 2.º, n.º 1 (a prática ou ajuda à antecipação da morte de alguém a seu pedido em determinadas condições) cons- titui uma unidade de sentido que não se deixa reconduzir à soma dos diferentes critérios ou pressupostos nela estabelecidos como condição de atuação da estatuição (a descriminalização ou não punibilidade de tal prática). Neste caso, portanto, o todo daquela previsão é mais do que a soma das suas partes. Esta razão de ordem substantiva tem, como mencionado, uma correspondência na completude for- mal-estrutural da norma em causa. O artigo 2.º, n.º 1, em apreço contém, na verdade, uma formulação normativa típica: orienta a conduta dos seus destinatários e consubstancia um autónomo critério de decisão. O mesmo preceito é uma verdadeira disposição normativa. Ao invés do que poderia parecer numa leitura superficial, o seu alcance não se esgota na determinação das situações a que se aplica o regime estabelecido nos artigos subsequentes, como se se tratasse de uma simples definição legal (sobre a contraposição entre normas prescritivas e outros enunciados jurídicos, como as definições legais, vide além dos Autores acima referidos, José Lamego, Elementos de Metodologia Jurídica , Almedina, Coimbra, 2016, pp. 39 e segs.). Inver- samente, tais artigos, nomeadamente os do Capítulo II (artigos 3.º a 16.º), é que desenvolvem e regulam aspetos já contidos no artigo 2.º, n.º 1. A inadequação do enunciado deste preceito como definição legal (ou como definição tout court ) acaba, de resto, por ser implicitamente reconhecida pelo próprio requerente, ao salientar a sua incompreensão, secundando as críticas expressas no parecer pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, relati- vamente àquele que acima foi identificado como o primeiro subcritério do segundo critério: «sendo o único critério associado à lesão o seu caráter definitivo, e nada se referindo quanto à sua natureza fatal, não se vê como possa estar aqui em causa a antecipação da morte, uma vez que esta pode não ocorrer em consequên- cia da referida lesão» (requerimento, ponto 8.º). Correspondendo a morte a uma inevitabilidade – a hora é incerta, mas a morte é certa – a (única) antecipação da morte aqui relevante é aquela que, sendo punível noutras circunstâncias, por força do disposto no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto deixa de o ser. De todo o modo, é de referir que nem o caráter estruturalmente completo de uma dada norma, nem a sua unidade teleológica constituem obstáculos definitivos à identificação, a partir de segmentos ideais da mesma ou de partes do respetivo enunciado linguístico, de outras normas autónomas de âmbito mais restrito – operando-se, deste modo, um desdobramento da primitiva norma em (sub)normas de âmbito mais restrito – sem que tal desvirtue ou ponha necessariamente em causa o sentido normativo fundamental da primeira. Por exemplo, e confirmando isso mesmo, no caso vertente, facilmente se podem autonomizar quatro normas, considerando a dupla alternativa “praticar ou ajudar” na antecipação da morte pedida por pessoa em situação de sofrimento intolerável, com “lesão definitiva ou doença incurável e fatal”. E em qualquer uma delas subsiste a unidade teleológica da respetiva previsão, já que em todas continua a operar-se – e, o que se
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