TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

356 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL constitucional, respeitando os limites constitucionais decorrentes do princípio da segurança jurídica e da tutela da confiança legítima relativamente à retroatividade substancial. Mais: a lei que a si própria se qualifica como inter- pretativa não deixa de ser uma manifestação da mesma competência legislativa que é fonte em sentido orgânico da lei interpretada. Por isso mesmo, a atividade hermenêutica do legislador e dos juízes é essencialmente diferente, tornando-se necessário distinguir a interpretação legislativa da interpretação judicial, quer quanto ao seu fundamento, quer quanto ao seu processo (vide o Acórdão n.º 395/17): «Quanto ao primeiro aspeto, importa notar que, ao passo que a interpretação judicial tem por fundamento a autoridade jurisdicional dos tribunais – ou seja, a idoneidade destes para «dizerem o direito» ou «descobrirem o direito», nomeadamente o direito vertido nas leis –, a interpretação legislativa baseia-se na autoridade polí- tica do legislador, o mesmo é dizer, no facto de caber ao poder legislativo determinar o que é mais justo, conveniente ou oportuno para a comunidade. Quando um tribunal interpreta uma lei, nomeadamente uma lei ambígua, num certo sentido, o fundamento da decisão é a correção jurídica desse juízo; o tribunal afirma que determinado sentido é o sentido verdadeiro e originário da lei, de tal modo que as posições jurídicas – os direitos, os poderes, os deveres ou os ónus – por ele implicadas já se encontravam definidas no momento em que a lei entrou em vigor. É claro que os tribunais cometem necessariamente erros de interpretação e que a interpretação das leis é muitas vezes objeto de controvérsia; é ainda certo que, em muitas situações, os juízes têm dúvidas, por vezes insanáveis, sobre o sentido a dar às leis que interpretam. Mas ao decidir um caso em que se coloca um problema de interpretação difícil e controverso, o tribunal atua, por necessidade funcional, no exercício de um poder estritamente jurisdicional – o de decidir qual o direito consagrado na lei. Já o legislador, não tendo qualquer competência jurisdicional, atua sempre com base na sua autoridade política, ou seja, com fundamento no seu título constitucional para decidir o que é melhor para a comunidade. Significa isto que, ao interpretar a lei num certo sentido, o legislador não se arroga a idoneidade de descobrir o direito nela vertido, mas o de fixar o sentido com que ela deve valer por razões de justiça, utilidade ou oportunidade sobre as quais só ele tem autoridade constitucional para decidir; os critérios da sua decisão são, por necessidade funcional, de natureza política e não jurídica. Esta divergência de fundamento entre interpretação legislativa e judicial traduz-se – e aqui reside o segundo aspeto da distinção – nos diversos processos através das quais uma e a outra são geradas. Na verdade, o processo judicial e o legislativo são estruturados em função da natureza do poder que através deles se exerce. Em virtude da sua natureza jurisdicional, a interpretação judicial é realizada por tribunais compostos por juízes indepen- dentes e com formação técnica específica, no âmbito de pedidos de pronúncia sobre questões concretas relati- vas às situações jurídicas das partes, e através de decisões fundamentadas proferidas a partir de uma posição de imparcialidade. Já a interpretação legislativa, cujo fundamento é a autoridade política do legislador, reveste a forma de ato legislativo aprovado por um órgão com legitimidade democrática para tomar decisões políticas; o titular por excelência desse poder é a Assembleia da República, em que as leis são elaboradas, discutidas e aprovadas pelos representantes eleitos pelo povo para decidirem os destinos da comunidade.» Deste modo, a exclusão ou imposição de uma ou mais interpretações de certa norma legal já realizadas – ou claramente admissíveis – por determinação de uma lei posterior limita o alcance da primeira: entre as múltiplas declarações do direito de que tal lei era passível, algumas deixaram  ex vi legis  de ser admissíveis e, na medida de tal limitação, ocorre uma modificação do direito que os tribunais “podem dizer” (vide o Acórdão n.º 267/17). Daí que a interpretação ou esclarecimento formalmente consagrados pela lei nova não possam deixar de revestir uma natureza constitutiva e a retroatividade inerente à mesma Lei revista igualmente um caráter material ou subs- tancial (vide, de novo, os Acórdãos n. os 267/17 e 395/17).

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