TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

35 acórdão n.º 123/21 a livre revogabilidade, a qualquer momento, do pedido de antecipação da morte, remetendo, quanto às con- sequências dessa revogação para o artigo 11.º. Em concreto, a disposição normativa (na expressão de Blanco de Morais, “Justiça Constitucional”, Tomo II, O Direito do Contencioso Constitucional, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 164) do n.º 1 do artigo 2.º, isto é, o enunciado linguístico correspondente a tal artigo, em que se inserem as duas “normas” pretendidas identificar pelo requerente a partir de dois segmentos literais, reporta-se à noção de antecipação da morte medicamente assistida não punível. Numa primeira leitura da mesma, aquela disposição contém uma norma jurídica, estruturalmente completa , ou seja, em cujo «módulo lógico» se pode distinguir «um antecedente e um consequente, ou seja, uma previsão e uma estatuição » (assim, Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, p. 79, itálicos acrescentados; no mesmo sen- tido, cfr. Miguel Nogueira de Brito, Introdução ao Estudo do Direito, AAFDL Editora, Lisboa, 2017, pp. 420 e 432): a antecipação da morte praticada ou ajudada por profissional de saúde que ocorre por decisão da pró- pria pessoa (previsão 1), maior (previsão 2), cuja vontade seja reiterada, séria, livre e esclarecida (previsão 3), em situação de sofrimento intolerável (previsão 4), com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico (previsão 4.1) ou doença incurável e fatal (previsão 4.2), não é punível (estatuição). Aprofundando a compreensão lógica do mesmo preceito, no seu contexto de completude significativa – a caracterização e consagração normativa do que constitui a antecipação da morte medicamente assistida não punível –, extrai-se uma “outra” ( rectius , extrai-se “a”) norma jurídica, igualmente completa (dotada de antecedente normativo/previsão e consequente normativo/estatuição), que esse n.º 1 exprime, na sua inarre- dável integração com o n.º 3 do mesmo artigo. E isto é assim, já que a “decisão”, que se expressa no pedido da própria pessoa, apto a fazer ocorrer (a ter como resultado) a antecipação da sua morte (ou, segundo a letra do n.º 2 do artigo 12.º do Decreto, a “prática” «[d]o ato de antecipação da [sua] morte»), necessariamente desencadeia («obedece», na terminologia do n.º 3) um procedimento clínico e legal, de acordo com o regime previsto na lei. Ora, segundo tal leitura integrada, resulta do n.º 1: a antecipação da morte praticada ou aju- dada por profissional de saúde que ocorre por decisão da própria pessoa (previsão 1), maior (previsão 2), cuja vontade seja reiterada, séria, livre e esclarecida (previsão 3), em situação de sofrimento intolerável (previsão 4), com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico (previsão 4.1) ou doença incurável e fatal (previsão 4.2), formalmente expressa num pedido (previsão 5), a tramitar segundo um pro- cedimento clínico e legal regulado na mesma lei (previsão 6), não é punível (estatuição). É este o enunciado da norma jurídica (que é completa) que integralmente reflete, no seu todo signifi- cativo incindível – sem desvirtuar o sentido do que só nesse todo adquire verdadeira existência –, no seio do Decreto n.º 109/XIV, a pretendida antecipação da morte medicamente assistida não punível que o legislador intencionou consagrar com a aprovação do diploma. Com efeito, o conteúdo prescritivo essencial correspondente à opção político-legislativa positivada no Decreto n.º 109/XIV encontra-se expresso no respetivo artigo 2.º, n.º 1: não é punível a antecipação da morte de uma pessoa a seu pedido, praticada ou ajudada por profissionais de saúde, desde que verificadas determinadas condições ou pressupostos (correspondentes aos segmentos da previsão anteriormente indica- dos). Ou seja, por via desta disposição, o legislador redesenha em certos termos – e somente nesses termos – a linha que separa o ilícito do lícito quanto à colaboração voluntária de terceiros na morte de uma pessoa a seu pedido, já que fora das condições estatuídas no preceito em análise a mesma colaboração continua a ser criminalizada (cfr. os artigos 1.º e 27.º do referido Decreto). Significa isto que, sob pena de se manipular – ou mesmo atraiçoar – o pensamento legislativo, as diversas condições de que depende a passagem da fronteira da antecipação da morte medicamente assistida punível para a não punível, não podem deixar de ser vistas e compreendidas como uma unidade de sentido. Por outras palavras, cada um dos critérios cumulativos de que depende a não punibilidade da referida cola- boração voluntária dos profissionais de saúde na antecipação da morte de alguém a seu pedido – previsões 1 a 6, sem prejuízo do caráter alternativo entre si das previsões 4.1 e 4.2 – não vale isolada e autonomamente. À completude estrutural da norma corresponde, por força do sentido prescritivo que a mesma encerra, uma

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