TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
322 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL DECLARAÇÃO DE VOTO Votei vencida o presente Acórdão, por entender que a reforma de 1998, ao deixar cair do respetivo tipo legal o elemento “explorando situações de abandono ou de necessidade económica”, elimina o inciso que, claramente, enquadrava o lenocínio como um crime de ofensa à liberdade sexual e autodeterminação da pessoa, nesse caso, vítima da conduta de aproveitamento económico da prostituição. Na versão até então vigente, esse aproveitamento económico quando a vítima se encontrava em estado de necessidade, consti- tuía um comportamento lesivo e ofensivo por colocar em perigo a autonomia e liberdade do agente que se prostitui. Enquanto opção de política criminal, a atual redação assume que as situações de prostituição, relativa- mente às quais existe promoção e aproveitamento económico por terceiros, comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social, interferindo – colocando em perigo – a autonomia e liberdade de agente que se prostitui. Foi essa posição que este Tribunal tem sufragado e que o acórdão mais uma vez assimilou. No entanto, muito embora se compreenda a preocupação que subjaz a essa posição, entendo que o crime, tal como hoje se encontra desenhado, enquanto crime de perigo abstrato, se afasta dos critérios legi- timadores da incriminação. A conceção que hoje subjaz à norma, limitada que estaria por força do artigo 18.º, n.º 2, da Constitui- ção e, em especial, do princípio da dignidade penal do bem jurídico e da necessidade penal, parte de uma premissa não demonstrada e que o legislador expressamente afastou do respetivo tipo legal – o risco ou perigo de lesão da autonomia de vontade do agente que se prostitui e da sua liberdade sexual –, ou, mais concreta- mente, a situação de especial vulnerabilidade em que a “vítima” se encontra. Porém, e como chama a atenção o acórdão fundamento, “quando o nexo entre a factualidade típica e o bem jurídico tutelado ou pretensamente tutelado for débil, (…) a circunstância de esse bem jurídico ser um bem jurídico suscetível de acordo empresta força suplementar à conclusão de que o tipo legal de crime comporta uma restrição desproporcional do direito à liberdade (consagrado no artigo 27.º da Constituição) de quem, ainda que profissionalmente ou com intuito lucrativo, facilite, fomente ou favoreça a prática da prostituição por outra pessoa”. O mesmo sucederá, porventura, em todas as situações em que se não verifique essa exploração da necessidade económica (ou de vulnerabilidade) do agente que se prostitui. Nesta linha de raciocínio, entendo que a conduta tipicamente descrita não resiste ao teste da neces- sidade, dada a fragilidade do nexo entre a conduta que é descrita e o bem jurídico que a norma pretende tutelar. Por outro lado, neste contexto, o apelo direto à dignidade da pessoa humana, enquanto princípio prescritivo, tanto impõe uma especial atenção para a necessidade de tutela de situações de especial vulnerabi- lidade, como impõe uma especial consideração pela própria liberdade e autodeterminação sexual do agente que se prostitui. E, nesse sentido, a norma de incriminação afetará, de forma desproporcional, o direito ao exercício dessa liberdade, em violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, da Constituição, o que legitima um juízo de inconstitucionalidade do artigo 169.º, n.º 1 do Código Penal. – Maria Assunção Raimundo . Anotação: 1 – Acórdão publicado no Diário da República , II Série, de 12 de maio de 2021. 2 – Os Acórdãos n. os 144/04, 641/16 e 421/17 estão publicados em Acórdãos , 58.º, 97.º e 99.º Vols., respetivamente. 3 – Os Acórdãos n. os 134/20 e 160/20 estão publicados em Acórdãos , 107.º Vol..
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