TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
319 acórdão n.º 72/21 tem instrumentos para distinguir, na prática, a ténue linha que separa o consentimento da pessoa para a prática de atos de prostituição das situações de tráfico e prostituição forçada. As leis que criminalizam o uso do serviço sem o consentimento da vítima enfrentam dificuldades sérias na sua implementação e o sistema não consegue aplicá-las efetivamente (cfr. Sexual exploitation and its impact on gender equality , European Parliament, 2014, http://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/etudes/join/2014/493040/IPOLFEMM_ET (2014)493040_EN.pdf ). Neste contexto de política criminal, o desaparecimento do requisito da «exploração de um estado de necessidade ou de abandono» situa-se dentro da margem de liberdade de conformação do legislador democrático e visa, não a tutela de qualquer moral, mas a proteção de direitos fundamentais das pessoas à autonomia, à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade e à dignidade (artigos 1.º, 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, da CRP). A prostituição é uma questão que preocupa os Estados, por estar associada ao tráfico de pessoas e implicar uma violação de direitos humanos de um número cada vez mais elevado de pessoas, na sua maioria mulheres e crianças migrantes (traficadas de países subdesenvolvidos para países desenvolvidos), impedindo a estas pessoas o acesso à cidadania, à liberdade, à igualdade de direitos, e à autonomia na condução da sua vida. As pessoas são utilizadas como fonte de lucro para outrem, através de uma atividade que é hoje designada como a escravatura dos tempos modernos, tratando-se a prostituição de um dos negócios mais rentáveis do mundo, movimentando cerca de $186.00 biliões por ano e envolvendo cerca de 40-42 milhões de pessoas, 90% das quais dependentes de outrem e 75% das quais têm idades compreendidas entre 13 e 25 anos (cfr. Sexual exploitation and its impact on gender equa- lity, European Parliament, 2014 – um estudo pedido ou encomendado pela Comissão do PE relativa aos Direitos das Mulheres e à Igualdade de Género). Segundo estatísticas dos Estados membros da EU, cerca de 60% a 90% das pessoas prostituídas são vítimas de crimes de tráfico ( Ibidem ). Desde 1979, que as Nações Unidas têm por objetivo combater todas as formas de tráfico das mulheres e de exploração da prostituição das mulheres, conforme consta do artigo 6.º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW). A regulação jurídica e penal desta matéria encontra-se em evolução nos países da UE, visando a definição de políticas fortes de combate à exploração sexual e a elaboração de convenções e diretivas dirigidas ao alargamento da incriminação e ao aumento das penas quando a pessoa prostituída é menor de idade (Diretiva 2011/93/UE) ou vítima de tráfico (Con- venção do Conselho da Europa contra o tráfico de seres humanos, de 2005, e as Diretivas 2011/36/UE e 2012/29/UE). Os legisladores europeus aderiram a modelos diversos em matéria de prostituição: o modelo liberal da regula- ção da atividade como trabalho sexual (em vigor na Alemanha e na Holanda, mas ineficaz no combate ao tráfico, tendo provocado o aumento do mesmo, com indivíduos condenados por tráfico a pedirem licenciamento para o negócio da prostituição, sem qualquer melhoria das condições de trabalho das pessoas prostituídas e descida dos níveis de violência); o modelo abolicionista, em vigor na Suécia, na Noruega, na Islândia, na França e na Irlanda do Norte, que criminaliza todas as atividades relacionadas com a prostituição, inclusive o comprador de sexo, mas não as pessoas prostituídas (recomendado pelo Parlamento Europeu, na “Resolução de 26 de fevereiro de 2014, sobre a exploração sexual e a prostituição e o seu impacto na igualdade dos géneros”, por ter contribuído para a diminuição do tráfico de pessoas e da prostituição, bem como para uma alteração de mentalidades, normas e valo- res da população em relação à prostituição), e o modelo em vigor em Portugal, e noutros países europeus, que pune o lenocínio, de uma forma mais ou menos alargada, encontrando-se Portugal entre os países que prescindem, na definição do âmbito da incriminação, do requisito típico da exploração de um estado de necessidade e que pune, no artigo 160.º, n.º 6, do CP, quem, tendo conhecimento do crime de tráfico, utiliza, mediante pagamento ou outra contrapartida, os serviços da vítima. Existe consenso entre os Estados membros da UE de que o tráfico de pessoas e a exploração sexual devem ser erradicados, afirmando-se no estudo «Sexual exploitation and prostitution and its impact on gender equality», de 2014, atrás citado, p. 9, que «A prostituição e a exploração sexual são assuntos altamente genderizados, com mulheres e meninas, na maioria dos casos, a vender o seu corpo, por coação ou com consentimento, e homens e rapazes a pagar por este serviço» (sobre dados estatísticos, na Holanda, vide TAMPEP, 2009, Netherlands Country Report, citado no estudo do Parlamento Europeu, p. 37, segundo os quais, em 2008, 90% das pessoas prostituídas eram mulheres e a maioria das mulheres prostituídas eram migrantes, principalmente da Europa de Leste). Segundo o mesmo estudo do Parlamento Europeu, está a «ganhar apoio
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