TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
317 acórdão n.º 72/21 2.3. Como é sabido, outras decisões do Tribunal Constitucional, em expressiva maioria, têm adotado uma orientação no sentido da não inconstitucionalidade da norma sub judice . Atravessa este entendimento uma ideia – a sua ideia fulcral – de que “[…] a ofensividade que legitima a intervenção penal assenta numa perspetiva fundada de que as situações de prostituição, relativamente às quais existe promoção e aproveitamento económico por terceiros, comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social, interferindo com – colocando em perigo – a autonomia e liberdade do agente que se prostitui” [Acórdão n.º 641/16, itálico acrescentado; esta decisão viria a ser referida pelo Tribunal Constitucional ita- liano na Sentenza 141/2019, de 6 de março de 2019, enquanto abonação da conformidade constitucional da criminalização, nesse caso decorrente da chamada legge Merlim , das condutas de facilitação e de intermedia- ção (construídas em torno dos conceitos de recrutamento e de favorecimento) ao exercício da prostituição, empreendidas por terceiro (cfr., quanto às referências ao Acórdão n.º 641/16, os pontos 4.5. e 6.2. das Con- siderações de Direito da Sentenza )]. Existe, em tais casos – e corresponde ao entendimento deste Tribunal desde a decisão de 2004 –, uma genérica e preponderante apetência da ação descrita no tipo para o desencadear de eventos ou criar situações cujo desvalor (cuja danosidade), causalmente conexionado, imediata ou mediatamente, com o exercício da prostituição, o legislador quis antagonizar, através do instrumento de atuação do Estado correspondente à perseguição criminal, sendo certo que a opção por essa via ocorre num quadro racionalmente compreensível de valoração das potencialidades desvaliosas da realidade social envolvida (precursora, desencadeada ou pro- piciada) no conjunto de situações correspondentes ao fomento, favorecimento ou facilitação do exercício da prostituição, por parte de alguém, que não o próprio agente do crime, num quadro de atividade profissional ou de um exercício com intenção lucrativa. E vale esta opção na intencionalidade que lhe subjaz, independentemente do tratamento legal conferido na nossa Ordem Jurídica aos atos de prostituição, em si mesmos considerados, concretamente à subtração destes a qualquer tipo de perseguição sancionatória, através de uma política usualmente qualificada – e que corresponde à realidade portuguesa – como abolicionista, por oposição a uma política proibicionista ou a um enquadramento legal de tolerância regulamentadora (vide a caraterização destas opções legais, nas suas diversas gradações, em Peter Marneffe, Liberalism and Prostitution, Oxford University Press, Oxford, 2010, pp. 28/30). Com efeito, o abolicionismo, referido à prática da prostituição, caracteriza um conjunto de polí- ticas públicas que excluem a criminalização da venda de serviços sexuais, em si mesma considerada, e das atividades, exercidas pelo próprio agente da venda, diretamente relacionadas com esta, como seja a solicitação ou a oferta em si mesma. Essa opção não descarta, todavia – conforme demonstra a prática assumidamente abolicionista de diversos países ( ibidem ) –, sancionar (mesmo até criminalizar) a com- pra de serviços sexuais ou os comportamentos de terceiros (dos “clientes”) comummente utilizados para a obtenção desses serviços. É o que sucede, por exemplo, com a lei britânica sancionando o chamado kerb crawling [vide https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/kerb-crawling ] e, na Suécia, desde 1999, com a aprovação da designada Lei Kvinnofrid [vide a entrada prostitution in Sweden, na Wikipedia , https://en.wikipedia.org/wiki/Prostitution_in_Sweden , consultada em 19 de janeiro de 2021], que não proíbe a oferta de serviços sexuais mediante contrapartida remunerada, criminalizando, porém, o cliente e toda a atividade de gestão de um negócio de aproveitamento económico da prostituição (que envolva o contributo de qualquer pessoa diversa daquela que se prostitui), e a atividade remunerada de agencia- ção para o exercício da prostituição [a opção de criminalização do cliente e das condutas paralelas de facilitação ou aproveitamento por terceiros, foi considerada pelo Conseil Constitutionnel francês (Decisão n.º 2018-761, de 1 de fevereiro de 2019) conforme à Constituição]. No contexto geral da opção abolicionista, emprega-se o expressão abolição permissiva (p ermissive abo- lition, em contraposição a impermissive abolition, que sinaliza a perseguição sancionatória do cliente, Peter Mar- neffe, Liberalism and Prostitution, cit. , p. 29) para referenciar, no quadro geral de uma política abolicionista, a opção por políticas públicas de não repressão sancionatória ou criminalização, tanto da oferta como da
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