TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

316 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL (supra, ponto 13), então, a circunstância de esse bem jurídico ser um bem jurídico suscetível de acordo empresta ainda força suplementar à conclusão – já decorrente, sem mais, daquela debilidade – de que o tipo legal de crime comporta uma restrição desproporcional do direito à liberdade (consagrado no artigo 27.º da Constituição) de quem, ainda que profissionalmente ou com intuito lucrativo, facilite, fomente ou favoreça a prática da prostituição por outra pessoa. Desenvolvendo-se aquela conduta dentro de um espaço em que, perante o recorte típico da norma incriminatória, a livre disposição do bem jurídico por parte de quem se prostitui se mostra plausível, a sua criminalização não pode deixar de considerar-se desproporcional. Pode conceder-se que esta norma incriminatória seja adequada a tutelar a liberdade sexual, no sentido de que esta constitui um bem jurídico digno de pena e de que a conduta tipicamente descrita é objetivamente apta a abranger situações em que essa liberdade foi exposta a um perigo concreto de lesão. No entanto, a norma não resiste ao teste da necessidade: a extrema fragilidade do nexo entre a conduta que aí é descrita e o único bem jurídico que a norma poderia tutelar, acrescida do facto de a mesma abranger situações em que há até um exercício da liberdade sexual por parte de quem se prostitui, não permitem a conclusão de que tal norma seja necessária para tutelar esse direito. Mesmo persistindo na via da criminalização, o legislador poderia empreender essa tutela com significativamente menor restrição do direito à liberdade, através de um recorte típico que, podendo porventura ainda configurar-se como crime de perigo abstrato, apresente um autêntico nexo de perigosidade típica entre conduta e bem jurídico. Poderia então ainda discutir-se a proporcionalidade em sentido estrito da norma, mas pelo menos estar-se-ia já num contexto de verdadeiro conflito de direitos e interesses constitucionais. Pelo contrário, a vigente norma incri- minatória restringe um direito (à liberdade) em nome de um outro (à liberdade sexual) que pode plausivelmente não ter sido colocado em perigo concreto e ter até sido livremente exercido pelo seu titular, circunstância em que não há, portanto, carência de tutela penal. Importa apenas acrescentar que esta conclusão não aproveita diretamente a outros tipos legais de crime con- figurados como crimes de perigo abstrato e destinados a tutelar a liberdade e a autodeterminação sexuais, como a divulgação, ou a detenção com vista à divulgação, de material pornográfico em que sejam utilizados menores, previstas e punidas no artigo 176.º, n.º 1, alíneas c) e d) , do Código Penal. Sem encetar um exercício de compara- ção mais exaustivo e, novamente, sem exprimir qualquer consideração sobre a constitucionalidade de tais normas, pois não são elas as normas sob fiscalização, bastará notar que, ali, a utilização dos menores nos materiais em causa é criminalmente proibida [cfr. a alínea b) do mesmo preceito], ao contrário do que acontece com a prostituição; depois, e porque de menores se trata, que essa utilização nunca poderia considerar-se resultante de um exercício de liberdade sexual, razão pela qual, desde logo, se está aqui antes no domínio dos crimes contra a autodeterminação sexual. […]” (itálicos acrescentados). 2.2.5. Em suma, as posições no sentido da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal têm assentado na afirmação da perda de conexão com um bem jurídico suficien- temente definido, a partir das alterações introduzidas na norma incriminadora pela Lei n.º 65/98, de 2 de setembro. Ao eliminar-se o elemento típico de exploração duma situação de abandono ou necessidade, já não estaria em causa a proteção da liberdade sexual e, por outro lado, a dignidade da pessoa humana seria mobilizável em termos vagos, não oferecendo suporte bastante à incriminação. Não se afigurando viável considerar uma interpretação do preceito mais restritiva do que a sua letra consente, restaria apenas, então, a injustificada criminalização da mera atividade de proxenetismo, a tutela por via penal de interesses morais ou de bons costumes, a evitação “do pecado”, que poderia manifestar-se até com sinal contrário ao da liberdade individual das pessoas que a norma visou proteger. Os possíveis comportamentos atentatórios da dignidade humana estariam fora do tipo, sem poderem considerar-se necessária ou mesmo razoavelmente pressupostos na ação expressamente proibida, o que, especialmente estando em causa um comportamento passível de acordo, não consentiria uma construção constitucionalmente conforme de um crime de perigo abstrato, já de si particularmente exigente. Não é esta, todavia, a única perspetiva a partir da qual pode ser olhada a norma sub judice .

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