TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
315 acórdão n.º 72/21 em Direito Penal ( Contributo para a Fundamentação de um Paradigma Dualista ), Coimbra Editora, 1991, pp. 362 e segs. et passim ). Por isso que a prática de atos sexuais entre adultos sem o acordo de um deles constitua uma conduta que indiscutivelmente reclama a intervenção do direito penal, mas que a prática de tais atos de forma consensual seja, mais do que lícita, uma expressão igualmente indiscutível desse mesmo bem jurídico. Isso significa que esses tipos legais envolvem, que têm sempre latente, um potencial efeito restritivo sobre o próprio bem jurídico que justifica a sua existência. Esta conceção dualista do assentimento ou da concordância do portador concreto do bem jurídico – conceção que se mantém incontrovertida – pode, aliás, ser invocada em abono da interpretação restritiva acima referida (no ponto 12), segundo a qual o tipo legal de crime do lenocínio simples continua a pressupor a exploração de uma situação de especial vulnerabilidade de quem se prostitui. Con- tudo, as mesmas razões então indicadas permanecem aqui válidas: essa afigura-se uma interpretação contra legem , sendo antes forçoso concluir que o legislador pretendeu de facto criminalizar, quando praticada profissionalmente ou com intuito lucrativo, a conduta de fomentar, facilitar ou favorecer a prostituição independentemente de a pessoa que se prostitui ter oferecido o seu acordo à prática dos atos sexuais em que a mesma se traduz. De resto, como já se referiu, a própria exigência de que haja exploração de uma situação de vulnerabilidade da pessoa que se prostitui continua a não pressupor o acordo dessa pessoa à prática de tais atos, pelo que, neste específico ponto, não há diferença sensível entre a vigente redação deste tipo legal de crime e aquela que a precedeu, a qual estabelecia já um crime de perigo abstrato. A diferença é, essa sim, que a redação precedente procurava estabelecer um nexo causal entre a conduta típica e a ofensa ao bem jurídico – se ele era ou não suficiente para assegurar a sua consti- tucionalidade é questão que aqui não releva, pois não é essa a norma sob fiscalização –, enquanto a redação atual resiste a qualquer tentativa de identificação de um nexo dessa natureza (nos termos explanados supra , no ponto 13). Já se disse que o recurso à técnica do perigo abstrato na criminalização de comportamentos não está, por princípio, constitucionalmente vedado. O ponto que se procura agora fazer é o de que os crimes de perigo abstrato, já de si adstritos a especiais condições constitucionais quando comparados com os crimes de dano e os crimes de perigo concreto – onde a ofensa ao bem jurídico é, respetivamente, certa ou mais próxima – são ainda mais difíceis de sustentar quando estejam em causa bens jurídicos suscetíveis de acordo, como a liberdade sexual. Se o acordo do portador, mais do que tornar lícita a conduta do terceiro, a convoca à realização do bem jurídico, o legislador, ao criminalizar um comportamento em nome de um bem jurídico dessa natureza através de uma presunção, está a conformar-se com uma dada probabilidade de restringir o direito à liberdade do terceiro em nome de um direito que não sofreu perigo concreto e, além disso, com uma equivalente probabilidade de restringir o exercício desse mesmo direito por parte do seu portador. Conforme afirma Augusto Silva Dias, op. cit. , p. 123, em termos que ajudam a ilustrar esta perspetiva: « Descrições típicas abrangentes que não explicitam suficientemente de que modo as condutas provocam a perda ou redução do valor da integridade pessoal para o seu titular (…), acabam por misturar casos de coisificação com casos de objetivação voluntária do próprio ser humano, isto é, casos de negação da identidade pessoal com situações de exercício normal dessa liberdade.» Importa notar que o lenocínio apresenta, neste ponto, uma relevante particularidade em relação a outros cri- mes destinados a tutelar a liberdade sexual: o seu objeto direto ou imediato não é a própria prática dos atos sexuais em que se traduz a prostituição, mas o ato de fomentar, facilitar ou favorecer essa prática. Por essa razão, não se afi- gura necessariamente de concluir que este tipo legal de crime comporte uma restrição desproporcional da liberdade sexual de quem se prostitui: o tipo legal não veda essa prática, embora limite as condições em que a mesma pode ser desenvolvida, designadamente a possibilidade de associação de quem se prostitui a uma pessoa ou organização de pessoas que fomente, facilite ou favoreça essa prática. Porém, se não se perder de vista que o único desígnio constitucio- nalmente legítimo deste tipo legal de crime seria o de tutelar a liberdade sexual de quem se prostitui, e que a sua estrutura é a de uma presunção (melhor, de uma cadeia de presunções) segundo a qual essa pessoa não prestou o seu acordo àquela prática, a perspetiva exposta não deixa de se lhe aplicar: o fundamento último do tipo legal não deixa de ser a tutela de um direito que, em face da conduta tipicamente descrita, pode plausivelmente ter sido exercido pelo seu portador. A criação de crimes de perigo abstrato em nome da tutela da liberdade sexual, ou de outro bem jurídico sus- cetível de acordo, não está terminantemente excluída em termos constitucionais. Contudo, quando o nexo entre a factualidade típica e o bem jurídico tutelado ou pretensamente tutelado for débil, como se concluiu ser aqui o caso
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