TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

314 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL norma é o facto de dela não emergir uma possibilidade de conjugação suficientemente robusta entre a primeira e a segunda exigências. Nas palavras de Jorge de Figueiredo Dias/Maria João Antunes, ‘Da inconstitucionalidade da tipificação do lenocínio como crime de perigo abstrato’, in Estudos em Homenagem ao Senhor Conselheiro Presidente Joaquim de Sousa Ribeiro – Vol. I, Almedina, 2019, p. 157: «Por um lado, a conduta que tem aptidão para colocar em perigo os bens jurídicos dignos de pena – a conduta de exploração de uma situação de carência e desproteção social – não está tipicamente formulada; por outro, a conduta típica descrita não tem aptidão para colocar em perigo os bens jurídicos identificados pela jurisprudência constitucional.» De facto, como os autores notam, é a própria jurisprudência constitucional que tem reconhecido que o perigo pressuposto por este tipo legal de crime não é verdadeiramente o perigo de lesão da liberdade sexual, ou de qualquer outro direito titulado pela pessoa que se prostitui (à autonomia, à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade), mas o perigo de explo- ração de uma situação de especial vulnerabilidade em que a mesma se encontra. Ou seja, o perigo de verificação do elemento típico que o legislador retirou do tipo legal. Dá disto exemplo o Acórdão n.º 641/16, quando aí se afirma que «a ofensividade que legitima a intervenção penal assenta numa perspetiva fundada de que as situações de prostituição, relativamente às quais existe promoção e aproveitamento económico por terceiros, comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social», acompanhado pelo Acórdão n.º 90/18, onde se afirma: «não se pressupõe que as situações de prostituição estejam necessariamente associadas a carências sociais elevadas e que qualquer comportamento de fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição comporta uma exploração da necessidade económica ou social do agente que se prostitui, mas antes que tais situações comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social» […]. É certo que ambos os arestos referem que essa exploração «interfer[e] com – colocando em perigo – a autono- mia e liberdade do agente que se prostitui». O facto é que essa exploração não faz parte do tipo legal e está já, portanto, ela própria, a ser pressuposta. A feição que o problema afinal assume é, então, a seguinte: a única linha de entendimento capaz de ainda relacionar este tipo legal de crime com a tutela de bens jurídicos (sc., aquela segundo a qual ele constitui um crime de perigo abstrato destinado a tutelar a liberdade sexual de quem se prostitui) assenta, em última análise, num perigo de verificação de um elemento que não consta desse tipo legal de crime (sc., a exploração de uma situação de vul- nerabilidade dessas pessoas). Portanto, assim interpretado, o tipo legal de crime envolve duas presunções (não deve tentar evitar-se o termo, pois nos crimes de perigo abstrato é de presunções que se trata: cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral. Tomo I, 3.ª edição, 2019, Gestlegal, p. 360), uma das quais, além de frágil (cfr. supra , o ponto 10), se suporta ainda na outra, podendo neste sentido dizer-se estarmos perante um crime de perigo duplamente abstrato. Talvez mais exatamente: de um crime de perigo abstrato elevado ao quadrado, em que: (i) a base é a presunção de que a exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem prostitui encerra tipicamente um perigo para a sua liberdade sexual; e (ii) o expoente é a presunção de que a conduta de quem, profissionalmente ou com intuito lucrativo, fomente, favoreça ou facilite a exercício de prostituição encerra tipicamente um perigo de exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem se prostitui. Em resultado desse processo de exponenciação, o âmbito da proibição é muito mais extenso do que aquele que, considerado o bem jurídico que se procura tutelar, seria o seu âmbito natural. Entre este âmbito natural e aquele âmbito exponenciado está um conjunto indiferenciado de con- dutas que decerto incluirá situações em que há perigo concreto de lesão ou até dano do bem jurídico, mas isto constituirá uma pura contingência, pois nada há no tipo legal de crime que cuide realmente de direcioná-lo para a punição desses casos. É um dos aspetos que o separa de tipos legais como o da condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto no artigo 292.º do Código Penal, em que o perigo de lesão é imanente a toda e qualquer das condutas abrangidas pela norma incriminatória e, por isso, resguarda o tipo legal de crime do argumento de que não é necessária uma intervenção penal tão antecipada. 14. Nos tipos legais de crime que almejam a tutela da liberdade sexual, o assentimento – mais especificamente, o acordo – do portador concreto do bem jurídico não se limita a traçar uma fronteira entre comportamentos ofen- sivos e comportamentos inócuos para o bem jurídico, nem uma fronteira entre ofensas intoleráveis e ofensas tran- sigíveis ao bem jurídico, mas uma fronteira entre comportamentos ofensivos do bem jurídico e comportamentos potencialmente necessários à satisfação do bem jurídico (vide Manuel da Costa Andrade, Consentimento e Acordo

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