TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

313 acórdão n.º 72/21 já que o mesmo abrange casos de exercício de prostituição por «pessoa auto determinada» (Acórdão n.º 294/04). Simplesmente, tem concluído pela não inconstitucionalidade do tipo legal assim interpretado. 13 . Se o Tribunal Constitucional tem entendido ser esse o único sentido normativo possível de extrair do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, e se tem entendido que esse tipo legal de crime visa ainda a proteção do bem jurídico «liberdade sexual», então é forçoso concluir que o Tribunal o concebe como um crime de perigo abstrato, técnica criminalizadora que, no entender também já expresso pelo Tribunal, apesar de envolver uma significativa antecipação da tutela de bens jurídicos, não se expõe necessariamente a inconstitucionalidade, na medida em que, inter alia, efetivamente se ligue ainda à proteção de bens jurídicos (vd. por exemplo os Acórdãos n. os 426/91, 246/96, 7/99 e 95/01). O tipo legal de crime de lenocínio simples abrange situações em que não existe perigo concreto de lesão da liberdade sexual de quem se prostitui, mas isso seria ainda justificável pelo facto de à conduta típica ser inerente um perigo abstrato de lesão desse bem jurídico: a já referida «normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social». É este, pois, atualmente, o ponto essencial do debate. Contudo, o entendimento aqui acolhido é o de que nem mesmo entendido nesses termos este tipo legal de crime deixa de expor-se a um juízo de inconstitucionalidade, pelas razões que em seguida se apresentam. Em primeiro lugar pode questionar-se a solidez daquela premissa, bem como a necessidade de recurso à via da cri- minalização no confronto com outras medidas aptas a alcançar o mesmo objetivo com menor restrição de direitos fundamentais, designadamente a pura descriminalização do lenocínio e a regulamentação da prostituição, no plausível pressuposto de que «os riscos que [com o crime de lenocínio] se querem esconjurar (em todo o caso sempre existentes em algum grau) resultam mais da incriminação da atividade em causa (e assim da natureza ‘subterrânea’, clandestina, para que é remetida) do que dela mesma » (Pedro Soares de Albergaria/Pedro Mendes Lima, op. cit. , p. 238; já Anabela Miranda Rodrigues/Sónia Fidalgo, op. cit. , p. 799). Admitindo que aquela «normal associação» existe, deve em qualquer caso questionar-se se ela permite sustentar um tipo legal de crime com uma estrutura de perigo abstrato. Conforme expõe a este respeito Carlota Pizarro de Almeida, op. cit. , pp. 31 e segs.: «A mera associação (incidindo sobre regularidades estatísticas) pode servir de fundamento a uma presunção, mas não é suficiente para a criação de crimes de perigo. (...) Há uma diferença de fundo entre esta situação e os crimes de perigo abstrato: nestes últimos, o agente só é punível se realizar (efetiva e dolosamente) a atividade de que cuida a incriminação – a qual consiste num início do iter criminis que levará (ou levaria) presu- mivelmente (com base na experiência) à concretização do perigo e eventualmente da lesão (numa relação vertical, de causalidade); no primeiro caso, induz-se, a partir de certos indícios, a verificação (concomitante, mas numa relação apenas horizontal, de coincidência) da conduta proibida e que não se logra provar. Ora em direito penal, como é para todos evidente, não pode haver lugar a presunções sobre a prática do facto proibido (e menos ainda inelidíveis, como seria o caso), pois tal hipótese colide frontalmente com o princípio da presunção de inocência.» É esta, de resto, a única visão consentânea com o fundamento da admissibilidade genérica do recurso aos crimes de perigo abstrato: o de constituir uma técnica criminalizadora necessária a um direito penal «adequado à sociedade do risco» (Jorge de Figueiredo Dias, op. cit. , p. 38). Baseada numa mera associação, que não num autêntico nexo causal de perigosidade, a norma incriminatória perde o seu referente teleológico, expondo-se à crítica de que «pune o que não consegue provar por não conseguir provar o que quer punir» (Pedro Soares de Albergaria / Pedro Mendes Lima, op. cit. , p. 209). Desse modo – pode acrescentar-se –, a norma conforma-se com a eventualidade de punir também, pelo menos em parte, o que não quer sequer punir, razão pela qual pode duvidar-se que um tipo legal de crime com estas características traduza sequer uma vontade da maioria. Por outro lado, a configuração de uma norma como crime de perigo abstrato traz consigo particulares exigências no plano da tipicidade – é dizer, da determinabilidade da conduta proibida. Como o Tribunal Constitucional já em várias ocasiões sustentou ( e. g. , nos Acórdãos n. os 20/91 e 426/91), é crucial que o bem jurídico tutelado possa ser claramente identificado e que a conduta típica seja descrita de forma especialmente precisa. Relativamente à norma em apreço, até poderia considerar-se que a mesma satisfaz ambas as exigências: quanto à primeira, embora o bem jurídico pretensamente tutelado não seja absolutamente consensual, é de conceder que existem elementos suficien- tes para se concluir estar em causa a liberdade sexual; quanto à segunda, embora o tipo legal faça uso de elementos subjetivos e normativos, é relativamente indiscutível o seu âmbito de incidência. O que falha redondamente na

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