TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

312 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL estar, desse passo, a facilitar, fomentar ou favorecer a prostituição de uma pessoa que se encontre numa situação de vulnerabilidade como a de uma pessoa que não se encontre numa tal situação e que tenha, antes e ainda assim, decidido prostituir-se, por exemplo por ver nisso um modo de obter um nível mais satisfatório de rendimento financeiro. Em nenhum de tais casos poderá também dar-se como adquirido ou sequer como significativamente mais provável, a partir do caráter profissional e/ou da intenção lucrativa do/a dono/a da pensão, que a sua ação tenha caráter exploratório, desde logo quando o valor cobrado for um valor normal, idêntico ao que é cobrado a qualquer cliente (na mesma linha, vd. o exemplo formulado por Carlota Pizarro de Almeida, ‘O crime de lenocínio no artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal (Anotação ao Acórdão TC n.º 144/04)’, in Jurisprudência Constitucional n.º 7 (2005), p. 34). Importa notar que a liberdade sexual de uma pessoa inclui a decisão de praticar atos sexuais com outra em razão de se encontrar (objetivamente) ou sentir (subjetivamente) ameaçada por um mal importante não imputável a esta segunda pessoa, cuja conduta, por conseguinte, mesmo que praticada com consciência daquela circunstância, não merece censura penal. Como afirma Pedro Caeiro, ‘Observações sobre a projetada reforma do regime dos crimes sexuais e do crime de violência doméstica (em apreciação no Grupo de Trabalho – Alterações Legislativas – Crimes de Perseguição e Violência Doméstica da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garan- tias)’, 2019, in www.parlamento.pt , neste ponto acompanhando Tatjana Hörnle, ‘The new German law on sexual assault and sexual harassment’, in German Law Journal 18, n.º 6 (2017), pp. 1323 e segs.: « Aí, é crucial distinguir o que deve ser incriminado e aquilo que pertence ainda à auto-organização (ainda que condicionada) da vida sexual. Como bem discorre Tatjana Hörnle, “it is a part of positive sexual freedom to use sexuality not only for pleasure or love, but also in an instrumental way as a means to avert an expected disadvantage”». Daí, no fundo, que seja hoje relati- vamente incontroversa, entre nós, a falta de dignidade penal da prostituição propriamente dita, assim como do recurso à prostituição, independentemente de a pessoa que se prostitui o fazer em virtude de uma situação de vulnerabilidade em que se encontre ou de qualquer outra razão, como aquela, já referida, de esta pessoa procurar nisso um rendimento financeiro suplementar relativamente àquele que seria já suficiente para que de uma situação de necessidade económica se não pudesse falar. […] 12. Na doutrina, mesmo quem se pronuncia pela não inconstitucionalidade tende a basear essa conclusão numa interpretação restritiva do tipo legal de crime de lenocínio simples, de modo a considerá-lo aplicável apenas a situações em que exista exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem se prostitui. É disso exemplo Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem , Universidade Católica Editora, 3.ª edição, 2015, p. 673. É também o caso de Inês Ferreira Leite, ‘A Tutela Penal da Liberdade Sexual’, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 21, n.º 1 (2011), p. 82, para quem, «mais importante do que construir o bem jurídico tutelado em torno de uma interpretação acrítica do tipo penal, será reconstruir o tipo penal em função de uma interpretação valorativa da incriminação, tendo como farol a verificação da lesão ou da colocação em perigo da liberdade sexual». Porém, não se afigura possível, quer em face da sua letra, quer da sua história, quer, ainda, de considerações de índole sistemática, interpretar este tipo legal de crime no sentido de o mesmo exigir que tenha havido exploração de uma situação de vulnerabilidade da pessoa que se prostitui: essa exigência não só não consta do n.º 1 do artigo 169.º como foi assumidamente retirada dele pelo legislador e deslocada para a alínea d) do n.º 2 do mesmo pre- ceito – ainda que em termos algo reconfigurados, visto bastar agora que tenha havido aproveitamento (não sendo já necessário que tenha havido exploração) de uma circunstância de especial vulnerabilidade da vítima –, passando portanto a constituir elemento qualificativo de um tipo legal de base que se pretendeu subsistisse sem ele. Pela impossibilidade de interpretar o tipo legal daquele modo restritivo conclui também, v. g. , Augusto Silva Dias, op. cit. , pp. 124 e segs. Deste modo, não poderia acolher-se uma interpretação dessa natureza sem que isso represen- tasse uma denegação da intencionalidade normativa imprimida a esse tipo legal de crime pelo legislador, aqui sim em iminente ingerência na sua liberdade de conformação. A jurisprudência deste Tribunal, de resto, tem sempre suposto uma interpretação deste tipo legal de crime no sentido de o seu âmbito não estar cingido a hipóteses em que haja exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem se prostitui, tendo inclusivamente explicitado

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