TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
309 acórdão n.º 72/21 praticamente sem ulterior especificação normativa, em nome da proteção da dignidade da pessoa humana ínsita no artigo 1.º da Constituição. A ideia de que pode ver-se no princípio da dignidade da pessoa humana um bem jurídico capaz de assegurar a proporcionalidade da restrição da liberdade inerente à criminalização de uma conduta, ou de que esse princípio pode de algum outro modo autónomo suster a criminalização de uma conduta, é, porém, uma ideia que suscita sérias reservas. Desde logo, de um ponto de vista sistemático, porque ele surge consagrado na nossa Constituição enquanto prin- cípio fundamental, e não – como noutras Constituições – enquanto direito fundamental. Depois, nos planos literal e teleológico, porque o elevado grau de abstração que o caracteriza tende a impedi-lo de desempenhar adequada- mente funções prescritivas concretas. Na síntese constante do Relatório da Delegação Portuguesa à 9.ª Conferência Trilateral (Itália, Espanha e Portugal), ‘O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Jurisprudência Constitu- cional’, 2007, in www.tribunalconstitucional.pt , p. 2 –, «com o alcance que lhe é dado pela Constituição – de crité- rio último de legitimidade do poder político estadual – o princípio da dignidade da pessoa humana acaba por ter um conteúdo de tal modo amplo (idêntico afinal de contas a um dos elementos constantes da tradição do Estado de direito) que não chega a ter densidade suficiente para ser fundamento direto de posições jurídicas subjetivas». Conclui-se aí: « O que nele se contém é por isso, e ao mesmo tempo, algo mais e algo menos do que um direito. Quando muito o princípio confere ao sistema constitucional de direitos fundamentais unidade e coerência de sentido, ajudando as tarefas práticas da sua interpretação e integração. O que se lhe não pode pedir é que ele seja tomado, em si mesmo, como fonte de um outro e autónomo direito (fundamental).» Esta perspetiva – como ali igualmente se expõe – reúne consenso doutrinário e tem recebido acolhimento reiterado na nossa jurisprudência constitucional desde os seus primórdios (vd. logo o Acórdão n.º 6/84), ainda que com alguns desvios, em todo o caso bem circunscritos. Se o princípio da dignidade da pessoa humana não pode geralmente fundamentar direitos subjetivos de modo direto e autónomo, mais dificilmente ainda poderá fundamentar, desse modo direto e autónomo, restrições a esses mesmos direitos. O seu elevado grau de abstração prejudica a sua utilização tanto para um efeito como para o outro, mas a segunda apresenta-se ainda como uma utilização contra libertate, o que por si só suscita fundadas dúvidas teleológicas e axiológicas. Pode então dizer-se que a abstração do princípio da dignidade da pessoa humana o impede, em via de regra, de ser visto como fonte de prescrições precisas – de «soluções jurídicas concretas», nas palavras do Acórdão n.º 105/90 –, sejam elas favoráveis ou desfavoráveis de um prisma individual, mas especialmente as segundas. Decerto que a criminalização de uma conduta almeja ela própria a produzir efeitos benignos, mas a beneficiária destes efeitos, mesmo quando se trate da proteção de direitos e interesses de natureza eminentemente pessoal, é a comunidade como um todo. Não tem o princípio da dignidade da pessoa humana como desígnio fundamental, justamente, impedir a instrumentalização do indivíduo para a consecução de finalidades comunitárias, ainda que presumivelmente louváveis? Isto mesmo faz com que o princípio da dignidade da pessoa humana «não deva cons- tituir fundamento de validade constitucionalidade de uma incriminação como a constante do atual art. 169.º, mas possa pelo contrário, ao menos em certas circunstâncias, ser legitimamente invocado como fundamento da sua inconstitucionalidade» (Jorge de Figueiredo Dias, op. cit. , p. 41). Mesmo deixando de parte esse e outros relevantes problemas (por exemplo, de legalidade criminal) suscita- dos por uma criminalização autonomamente filiada num princípio tão abstrato como o da dignidade da pessoa humana – paradigmático, na verdade, da categoria dos ‘conceitos essencialmente contestados’ –, e mantendo-nos antes num estrito horizonte de proporcionalidade, como poderá, pois, fazer-se decorrer diretamente de um tal princípio, que não de alguma sua concretização tangível, uma concreta e garantida restrição de direitos fundamen- tais? Como afirma Manuel da Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, p. 13, se «a dignidade humana é a verdadeira realidade numenal protegida pelo direito penal», ela é-o forçosamente «sob a forma e sub nomine dos bens jurídico-penais de índole pessoal», as únicas «mostrações ou cintilações fenomenológicas acessíveis à racionalidade jurídica». Sem a referência de um direito ou interesse específico, é a própria avaliação da proporcionalidade que fica inviabilizada, por nada haver num dos pratos da balança que seja minimamente mensurável. […]
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