TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

308 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL direitos ou conjuntos de direitos que, vencidos os dois testes anteriores, se vejam em conflito. Mas também aqui, ou talvez até sobretudo aqui, avultam as especificidades desta matéria, porque, conforme referido, um daqueles conjuntos integra necessariamente o direito à liberdade. Por fim, importa notar que, se a prática de certas condutas, de que é exemplo paradigmático a conduta de homicídio, não corresponde ao exercício de qualquer direito fundamental – caso em que a restrição do direito à liberdade, além de inerente à criminalização, tende a constituir o seu único efeito –, muitos (ou mesmo uma grande parte dos) tipos legais de crime previstos no nosso ordenamento jurídico-penal coenvolvem, pelo menos prima facie , uma restrição de outros direitos fundamentais. É disso exemplo o crime de difamação previsto no artigo 180.º do Código Penal, de que decorrem limites ao exercício das liberdades de expressão e de imprensa. Nestes casos, um juízo positivo de proporcionalidade tenderá a ser mais difícil do que em geral, na medida em que aí estejam de facto em causa, ao lado do direito à liberdade e no mesmo prato da balança que ele, outros direitos fun- damentais ainda. No outro prato de balança terá de estar, não apenas um direito ou interesse constitucionalmente protegido, mas, nas palavras do Acórdão n.º 99/02, «um direito ou bem constitucional de primeira importância». O princípio do direito penal do bem jurídico constitui – pode dizer-se com segurança – um elemento sólido da jurisprudência deste Tribunal Constitucional (cfr., por exemplo, e embora nem todos prolatados no sentido da inconstitucionalidade, os Acórdãos n. os 25/84, 85/88, 426/91, 527/95, 288/98, 604/99, 312/00, 516/00, 99/02, 337/02, 617/06, 75/10 e 377/15). Não se divisam, nem aí nem na doutrina nacional, sintomas consideráveis de uma tendência para a preterição do princípio do bem jurídico como referência matricial do conceito material de crime em favor de outros como o da proteção do ordenamento jurídico ou o da proteção da vigência da norma (cfr. novamente Jorge de Figueiredo Dias, op. cit. , p. 40), nem razões bastantes para que as críticas que lhe podem plausivelmente ser apontadas sejam vistas como insuperáveis (cfr. e. g. Maria João Antunes, Constituição, Lei Penal e Controlo de Constitucionalidade, Almedina, 2019, pp. 43 e segs.; José de Faria Costa, ‘Sobre o objeto de prote- ção do direito penal: o lugar do bem jurídico na doutrina de um direito não iliberal’, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, 142, n.º 3978 (2013), pp. 158 e segs.). Contudo, naturalmente, a existência de consenso em torno deste princípio não impede a existência de dissenso quanto à questão de saber se uma dada conduta se mostra ou não ofensiva – e suficientemente ofensiva – para algum bem jurídico com dignidade constitucional. É o que se verifica em relação à conduta criminalizada no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, cuja fiscalização é solicitada nos presentes autos. 7. O Tribunal Constitucional tem respondido a essa questão afirmativamente – ou seja, no sentido de que a conduta atualmente prevista no n.º 1 do artigo 169.º do Código Penal se mostra suficientemente ofensiva para direitos e interesses constitucionalmente consagrados para que se não exponha a inconstitucionalidade no con- fronto com o parâmetro do artigo 18.º, n.º 2, da Lei Fundamental. Foi sempre assim desde a primeira vez em que sobre aquela norma foi chamado a pronunciar-se, no Acórdão n.º 144/04 […]. […] 8. O entendimento foi reiterado pelo Tribunal Constitucional v. g. nos Acórdãos n. os 196/04, 303/04, 170/06, 396/07, 522/07, 591/07, 141/10, 559/11, 605/11, 654/11, 203/12, 149/14, 641/16, 421/17, 694/17, 90/18 e 178/18. Se nestas decisões se reiterou o sentido decisório acolhido no Acórdão n.º 144/04, é aí também discernível um certo desígnio de reconciliação desse veredito de não inconstitucionalidade com o princípio do direito penal do bem jurídico, que na fundamentação daquele Acórdão desempenhara um papel discreto. Não que aí tenha sido exatamente renegado: a consideração dispensada ao princípio é visível na parte da fundamentação onde se procura afastar a ideia de que este tipo legal de crime mais não faz do que tutelar «sentimentalismos» ou «uma ordem moral con- vencional particular» e se procura antes atribuir-lhe a tutela de valores mais concretos, como a «liberdade» e «uma ‘autonomia para a dignidade’ das pessoas que se prostituem». No entanto, ao concluir-se que o «significado que é assumido pelo legislador penal» com este tipo legal de crime é o da «proteção por meios penais contra a necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência», proteção essa que seria «diretamente fundada no princípio da dignidade da pessoa humana», acaba por admitir-se ao princípio do direito penal do bem jurídico uma malea- bilidade tal que dificilmente poderia deixar de conduzir a um considerável esvaziamento – ou, pelo menos, a uma problemática indefinição – do seu conteúdo prescritivo: qualquer norma incriminatória poderia justificar-se,

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