TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

307 acórdão n.º 72/21 2.2.4. As apontadas divergências atingiram, por fim, um último desenvolvimento na decisão ora recor- rida – Acórdão n.º 134/20 –, que se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade da norma incrimina- dora do lenocínio, ali se afirmando o seguinte: “[…] 6. Num Estado de direito democrático, o legislador ordinário dispõe inerentemente de uma grande liberdade para a definição das normas jurídicas que disciplinam a vida social. Em razão da legitimidade que para esse efeito lhe é atribuída pela comunidade, é inequivocamente a si que compete definir, entre tantas outras matérias, as condutas cuja prática atrai uma sanção penal e o exato recorte dessas condutas. No entanto, esta intervenção criminalizante está sujeita a certas limitações constitucionais, encontrando no princípio do direito penal do bem jurí- dico (à semelhança do que, embora com variações, se verifica em vários outros ordenamentos jurídicos) um primeiro e fundamental constrangimento. Manifestação específica do imperativo de proporcionalidade a que transversalmente se subordina a restrição de direitos fundamentais, este princípio perfila-se como uma barreira ao excesso – seja ele arbitrário ou apenas inadvertido – na restrição do direito à liberdade pela via penal, proibindo toda a criminaliza- ção que não possa ser justificada em nome de outros direitos ou interesses constitucionalmente consagrados. Ainda que, considerada a representatividade de que a atuação do legislador ordinário se reveste – em especial quando ela se exprima, como aqui necessariamente acontece, através de lei formal ( lex stricta ) –, a criminalização de uma conduta possa sempre supor-se exprimir o que em determinado momento constitua um sentimento de censura ético-jurídica dominante na sua comunidade, é indispensável que essa conduta se mostre ofensiva – e suficientemente ofensiva – para um bem jurídico com dignidade constitucional. De facto, se à criminalização de uma conduta é inerente a restrição de um direito consagrado na Constituição (o direito à liberdade, consagrado no seu artigo 27.º) e se, consequentemente, a lei só pode restringir esse direito na medida necessária para salvaguardar outros direitos ou interesses consagrados na Constituição (nos termos do seu artigo 18.º, n.º 2), a conclusão que se impõe é a de que a lei só pode criminalizar uma conduta na medida necessária para salvaguardar outros direitos ou interesses consagrados na Constituição. Por outro lado, constituindo a restrição do direito à liberdade a consequência jurídica mais drástica de entre as que o ordenamento jurídico português admite, justifica-se que os limites da atuação legislativa que se traduza em sancionar uma dada conduta com essa consequência sejam entendidos como manifestações especialmente intensas do princípio da proporcionalidade. Não porque envolvam qualquer variação estrutural desse princípio: trata-se, ainda aqui, essencialmente de procurar as linhas a partir das quais o parâmetro constitucional se opõe e impõe à vontade da maioria democraticamente organizada. Antes porque permitem que logo à partida se assuma que os juízos de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito em que o mesmo se desdobra só serão positivos quando a favor dessa restrição militem nítidas exigências de proteção de outros direitos fundamentais, podendo neste sentido considerar-se que a margem de liberdade do legislador ordinário na criminalização de con- dutas é menos ampla do que o é na generalidade da sua atuação. Daí que se justifique uma designação própria – ‘ princípio do direito penal do bem jurídico’ (vd. sobretudo Jorge de Figueiredo Dias, « O "direito penal do bem jurídico" como princípio jurídico-constitucional – Da doutrina penal, da jurisprudência constitucional portuguesa e das suas relações», in XXV Anos de Jurisprudência Consti- tucional Portuguesa, Coimbra Editora, 2009, pp. 31 segs.) –, designação essa cujo alcance, portanto, não será apenas o de operar uma especificação temática do princípio da proporcionalidade para as matérias penais (e, mais particularmente, para a criminalização de condutas), mas o de denotar desde logo que essa especificação se funda no reconhecimento de uma suficiente autonomia taxonómica ao princípio do direito penal do bem jurídico, que o individualiza dentro do reino da proporcionalidade a que pertence. É essa autonomia que explica a utilização de conceitos também próprios no contexto do juízo de proporcionalidade que este princípio requer: fala-se aí de ‘dignidade de tutela penal’ para significar a exigência de que exista um bem jurídico-constitucional que a norma incriminatória seja adequada a tutelar; de ‘carência de tutela penal’, ou de ‘subsidiariedade da intervenção penal’, para exprimir a exigência de que essa norma seja necessária para realizar essa tutela. Continua em qualquer caso geralmente a falar-se aí de ‘proporcionalidade em sentido estrito’ para significar o exercício de ponderação dos

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