TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

306 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL prevenção ou repressão do pecado, um exercício de moralismo atávico, com que o direito penal do Estado de Direito da sociedade secularizada e democrática dos nossos dias nada pode ter a ver. Uma consideração das coisas contra a qual não pode pertinentemente invocar-se a ideia de obviar a perigos contra a dignidade ou a autonomia das pessoas – homens ou mulheres – envolvidas na prostituição. Na certeza de que a incriminação é que pode, ela própria, configurar um atentado perverso à dignidade ou autonomia das pessoas. Que sendo adultas, esclarecidas e livres – no fundo a situação típica pressuposta pela incriminação – devem poder legitimamente escolher conduzir a sua vida tanto à sombra da ‘virtude’ como do ‘pecado’. Uma escolha insindicável, que devem poder levar à prática, inteiramente resguardados contra a intromissão do direito penal. De outro modo e acolhendo-nos à síntese de Figueiredo Dias, ‘teríamos uma situação absolutamente anormal e incompreensível: a de o direito penal, pretendendo tutelar o bem jurídico da eminente dignidade (sexual) da pessoa, sacrificá-lo ou violá-lo justamente em nome daquela dignidade. Pois é claro que pertence à liberdade da vontade da pessoa dedicar-se ou não ao exercício da prostituição. O que colocaria o Estado (detentor do jus puniendi) na mais contraditória e perversa das situações: a de sacrificar a integridade pessoal invocando como legitimação o propósito de a tutelar!’ (Figueiredo Dias, ‘O ‘direito penal do bem jurídico’ como princípio jurídico-constitucional implícito’, in RLJ, ano 145.º, maio-junho de 2016, p. 261). Nesta linha não podemos acompanhar o entendimento que a este propósito vem sendo sistematicamente sufragado pelo Tribunal Constitucional. Que tem procurado apoiar a legitimação material da incriminação na sua relação ‘com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem’, como se sustenta, entre outros, no Acórdão n.º 144/04 (no mesmo sentido, Acór- dãos n. os 170/06, 396/07, 141/10, 559/11, 203/12 e 149/14). Explicitando que a ‘intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspetiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da proteção da liberdade e de uma ‘autonomia para a dignidade’ das pessoas que se prostituem’. Uma consideração das coisas que é posta em crise quando confrontada com o recorte típico da incriminação. Que pune os factos mesmo nas constelações fácticas em que as pessoas que se prostituem, sendo maiores, o fazem com toda a liberdade e autonomia. O que obriga o Tribunal Constitucional a acolher-se a uma insustentável razão de paternalismo. Argumentando que “ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão de livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando-o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para fins dele próprio, mas para fins de terceiro” ( id. ibid ). Para além desta (suposta) tutela da autonomia e da liberdade – contra o (efetivo) sacrifício da autonomia e da liberdade –, sobra ainda a ideia de prevenção do risco de exploração. Assim e ainda nos termos do mesmo Acórdão: ‘o facto de a exploração legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir do qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desproteção social’ (ibid). Em vez de uma incriminação preordenada à tutela da autonomia e da liberdade sexual, teríamos então uma infração, concebida como crime de perigo abstrato e apostada em obviar ao perigo de um ‘modo social de exploração de uma situação de carência e desproteção social’. Bem podendo, por isso, acontecer que a prevenção do perigo abstrato de uma forma desviante de comportamento ou de condução da vida se faça à custa do sacrifício da liberdade e da autonomia sexual. Afinal de contas, à custa do sacrifício do único bem jurídico em nome do qual o legislador pode incriminar compor- tamentos humanos relacionados com a vida sexual das pessoas. É por isso que não posso acompanhar o entendimento de que a norma constante do artigo 169.º do Código Penal na versão vigente satisfaz as exigências de que a Constituição da República faz depender a legitimação mate- rial da criminalização. […]” (itálicos acrescentados).

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