TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

305 acórdão n.º 72/21 A Reforma de 1998 – Lei n.º 65/98 –, ao suprimir do elemento do tipo legal de lenocínio a «exploração de situações de abandono ou de necessidade económica» tornou indefinido o bem jurídico por ele tutelado: a liberdade sexual da pessoa que se prostitui?; a moral sexual?; uma determinada conceção de vida?; a paz social? A questão da identificação do bem jurídico que a norma visa proteger suscitou na doutrina e na jurisprudência divergências interpretativas que não deixarão de persistir enquanto não houver uma reformulação do preceito. É que a supressão daquela exigência típica também eliminou a ligação do comportamento ao bem jurídico da liberdade e da autodeterminação sexual, com a consequente incriminação de comportamentos que vão além dos que ofendem esse bem jurídico e relativamente aos quais não se pode afirmar a necessidade de restrição do direito à liberdade (cfr. votos de vencido nos Acórdãos n.º 396/07 e 654/11, cuja fundamentação acompanho). De modo que só fazendo uma interpretação restritiva da norma, no sentido de se aplicar apenas aos casos em que a vítima se encontra numa situação de necessidade económica e social, é possível afirmar que o tipo legal vida proteger o bem jurídico da liberdade sexual. Simplesmente, não pode considerar-se que a letra da lei é mais ampla que o seu espírito quando foi o próprio legislador que quis eliminar do texto da lei aquela exigência. Se o fez para proteção de outros bens jurídicos, não o deveria deixar inserido no capítulo dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual. E não é no valor da dignidade da pessoa humana que se pode encontrar o bem jurídico-constitucional digno de proteção penal. Como refere Figueiredo Dias, não é «essa a natureza do princípio, como não é essa a função de que surge investido em matéria penal; antes sim a de se erguer como veto inultrapassável a qualquer atividade do Estado que não respeite aquela dignidade essencial e, deste modo, antes que como fundamento, como limite de toda a intervenção estadual» (O ‘direito penal do bem jurídico como princípio jurídico-constitucional implícito’, in, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 145, p. 260). Portanto, admitindo que a conduta de quem, profissionalmente, ou com intenção lucrativa, fomenta, favorece ou facilita o exercício de prostituição por pessoa que se encontra numa situação de necessidade económica e social necessita de tutela penal, com entendo, então só a introdução desse último elemento no tipo legal colocará o preceito em conformidade com a Constituição. […]” (itálicos acrescentados). Por sua vez, o Senhor Conselheiro Presidente Manuel da Costa Andrade divergiu da maioria formada no Acórdão n.º 641/16 mediante a declaração de voto que ora se transcreve (que retomou, por remissão, nos Acórdãos n. os 421/17, 694/17 e 90/18): “[…] Votei vencido por estar convencido de que a norma de incriminação e punição do lenocínio constante do n.º 1 do artigo 169.º do Código Penal é contrária à Constituição, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República. E é assim porquanto a incriminação da conduta típica não está preordenada à salvaguarda – menos ainda é para tanto necessária – de quaisquer ‘direitos ou interesses constitucionalmente protegidos’. Ou dito em linguagem da doutrina penal, não é necessária à proteção de qualquer bem jurídico. Bem jurídico que não se descortina na pertinente área de tutela típica. Noutra perspetiva, estamos perante uma manifestação concreta dos chamados ‘crimes sem vítima’, no sentido criminológico do termo, na linha da E. Shur ( victimless crimes ou crimes without victims . Cfr. Edwin Schur, Crimes Without Victims: Deviant Behavior and Public Policy, Prentice Hall inc.,1965). É seguramente assim a partir da reforma de 1998. Que inter alia eliminou o inciso –‘exploração de situação de abandono ou de necessidade económica’ – constante da versão originária (de 1982/1995). E deste modo abriu deliberadamente mão do momento da factualidade típica que associava a infração à ofensa à liberdade sexual e dei- xou atrás de si uma incriminação exclusivamente votada à punição de ‘quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar’ uma prática em si mesma irrelevante e indiferente para o direito penal – a prostituição. Assim, o afastamento da liberdade sexual da área de proteção da norma deixa apenas em campo a

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