TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

303 acórdão n.º 72/21 Essa constatação torna ineliminável, de acordo com o princípio da necessidade da intervenção penal, a busca de um outro bem jurídico-penal, para justificar a incriminação. O Acórdão n.º 144/04 […] faz apelo direto à dignidade da pessoa humana, para validar jurídico-constitucionalmente (e não como ‘mera proteção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional’) a incriminação do lenocínio. A dignidade da pessoa humana é a mais basilar ideia regulativa de toda a ordem jurídica. No plano constitu- cional, é-lhe reconhecida a natureza de um dos dois fundamentos do Estado português (artigo 1.º da CRP). Nessa qualidade, é fonte primária da disciplina da atuação dos poderes públicos para com as pessoas, nela radicando, não só como limite, mas também como tarefa, valorações constitutivas de princípios constitucionais, de direitos fun- damentais de defesa, bem como de pretensões a prestações, no quadro dos direitos económicos, sociais e culturais. Em todas estas irradiações normativas, consensualmente admitidas, a ideia da dignidade da pessoa humana tem operado normalmente como produtora de sentido fundante e de conteúdos para direitos expressamente consagrados. Mas não se exclui que, em veste integrativa, dela possa resultar o reconhecimento de direitos não especifica- mente previstos. Assim aconteceu com o direito a um mínimo de existência, na sua vertente positiva de direito a prestações públicas garantidoras da sobrevivência, em situações de necessidade, o qual, pelo Acórdão n.º 509/02, foi imediatamente fundado na dignidade da pessoa humana. Em todas estas projeções, a dignidade da pessoa humana tem um alcance prescritivo que leva ao reconhecimento de posições jurídico-subjetivas constitucionalmente tuteladas. E ainda que não constituindo um sistema fechado, do extenso e diversificado catálogo de direitos fundamentais é possível inferir uma unidade de sentido, como consagração de um conjunto articulado de valores constitucionais atinentes à pessoa humana. Daí que a excecional fundamentação direta e exclusiva de certa solução tuteladora de uma pretensão subjetiva em exigências postuladas pela dignidade da pessoa humana, sem passar pela mediação concretizadora de uma regra de proteção de um concreto bem jurídico, se possa ainda mover estritamente dentro do universo axiológico-normativo da Constituição. É em direção de certo modo oposta a esta que a ideia foi mobilizada pelo Acórdão n.º 144/04, não como fundamento de um direito contra o Estado, mas como fundamento do exercício do poder punitivo do Estado, em compressão de direitos fundamentais. O que logo suscita a questão de saber se da dignidade da pessoa humana são inferíveis, para os particulares, imposições de conduta penalmente sancionáveis, mesmo quando o incumprimento não ofende qualquer bem específico. O que, noutras palavras, se interroga é se tem acolhimento constitucional um padrão objetivo de dignidade não conexionado com a liberdade e a integridade da personalidade de outrem, em termos tais que leve a conferir-lhe valor legitimante da incriminação de uma conduta lesiva, no relacionamento interpessoal. Esta última nota é indispensável para uma definição rigorosa daquilo que está em questão. Na verdade, não se trata apenas de negar garantia jurídica à atividade de lenocínio, o que a coloca fora do âmbito de proteção constitucional da liberdade de profissão e da liberdade de iniciativa económica privada. Para além da ineficácia vinculativa de contratos, neste âmbito, por essa via facilmente se justificam, prima facie (sem necessidade de ponderações, em concreto), medidas restritivas da liberdade de ação, como, por exemplo, certas medidas de polícia ou a proibição de publicidade. Para justificar soluções deste tipo, basta considerar (corretamente) que a atividade de proxenetismo não é abran- gida pelo âmbito de proteção de nenhuma das normas constitucionais garantidoras da liberdade de ação. Mas, mais do que isso, do que aqui se trata é de saber se ela preenche o conceito material de crime, com as restrições daí decor- rentes para direitos fundamentais do agente. Não se questiona se essa atividade merece ou não proteção constitucional; o que se questiona é se ela é causa legítima de afetação, através da ação punitiva do Estado, de bens protegidos. Por isso mesmo, não se revela conclusiva a ideia, em si mesma de justeza inatacável, de que ‘a autonomia de uma pessoa ou o seu consentimento em determinados atos não justifica, sem mais, o comportamento do que auxilie, instigue ou facilite esse comportamento’ (Acórdão n.º 144/04). É bem verdade que a tolerância perante o próprio que desenvolve uma conduta vista pelo Estado e pela sociedade como um mal, em função do respeito pela liberdade individual, não tem necessariamente que se estender ao terceiro que promove essa conduta, retirando daí ganhos pecuniários. ‘Tal como, em geral, as ações que afetam outros’, essa intervenção de um terceiro deve estar sujeita a ‘controlo social’ (Stuart Mill, On Liberty, edição de 1978, Indianapolis/Cambridge, p. 97). Mas este entendimento deixa intocada a questão posta, no ponto decisivo de saber se é constitucionalmente legítimo que esse controlo se exerça (também) por meios penais.

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