TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

302 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL (de modo diversificado, consoante as previsões), como elemento de uma forma qualificada de crime de lenocínio, sujeita a uma moldura penal agravada. E, nisso, a norma do n.º 1 do artigo 170.º contrasta fortemente com todas as outras disposições de tutela da liberdade sexual. Em todas elas está presente, como elemento definidor do tipo legal de crime, o exercício de violência, coação, ou, pelo menos constrangimento sobre a vontade da vítima, ou então, no caso da fraude sexual, de indução em erro, também ela obstativa de genuína expressão volitiva, por parte de quem é enganado. Atendendo à configuração tipológica, ganha fundamento a ideia de que criminalizada é a atividade profissional ou com fins lucrativos de proxenetismo, em si mesma, em quaisquer circunstâncias, sem se exigir um encaminhamento para a prostituição imputável ao aproveitamento de condições situacionais tipicamente geradoras de défices de autonomia da vontade. A valoração, pela doutrina, deste novo dado legislativo foi, de uma forma geral, fortemente crítica – cfr., por todos, Figueiredo Dias, ‘O ‘direito penal do bem jurídico’ como princípio constitucional…’, in XXV anos de juris- prudência constitucional portuguesa, Coimbra, 2009, pp. 31 e segs, p. 39, para quem, «tendo o legislador ordinário eliminado a exigência de que o favorecimento da prostituição se ligasse à ‘exploração de situações de abandono ou de necessidade económica’, eliminou a referência do comportamento ao bem jurídico da liberdade e da autodeter- minação sexual e tornou-se infiel ao princípio do direito penal do bem jurídico», «surgindo a incriminação − pode ler-se em Direito penal. Parte geral, I, 2.ª edição, Coimbra, 2007. p. 124 − referida à tutela de puras situações tidas pelo legislador como imorais»; Anabela Rodrigues, ‘Anotação ao art. 170.º’, in Comentário conimbricense do Código Penal. Parte especial , I, Coimbra, 1999, p. 519, para quem a incriminação do lenocínio visa «proteger bens jurídicos transpersonalistas de étimo moralista por via do direito penal – o que se tem hoje por ilegítimo». 4. Na jurisprudência constitucional, tem vingado uma posição eclética, que procura conjugar, como razão da incri- minação, o interesse geral da sociedade e a tutela de um bem pessoal. […] Para justificar que faz parte da teleologia da norma a tutela da ‘autonomia para a dignidade’, [o Acórdão n.º 144/04] invoca a ‘normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade econó- mica e social das pessoas que se dedicam à prostituição’. A carência de tutela penal estaria, de certo modo, in re ipsa , na ‘necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência’, necessidade que, segundo padrões de tipicidade e de normalidade social, é explorada por aqueles que fomentam, favorecem ou facilitam o exercício da prostituição. Daí o concluir-se que «o facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir da qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipica- mente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desproteção social». Mas, sem contestar esses índices de normalidade, a verdade é que, não sendo a prostituição um fenómeno de expressão uniforme, com a eliminação daquela exigência o legislador não evita consequências de sobreinclusão, do ponto de vista da necessidade de tutela da liberdade sexual da pessoa que se prostitui. Não excluindo do âmbito da incriminação os casos em que não se comprove o aproveitamento de uma especial situação de fragilidade, quanto às condi- ções de uma real autonomia decisória, de alguém que possa ser considerado ‘vítima’ dessa conduta, ‘o legislador incrimina comportamentos para além dos que ofendem o bem jurídico da liberdade sexual’, como se sustenta na declaração de voto da Conselheira Maria João Antunes, anexa ao Acórdão n.º 396/07. Compreende-se cabalmente que, estando em causa a disponibilização, mediante uma contrapartida monetária, de uma dimensão íntima da personalidade, para satisfação sexual de outro e com obtenção de ganhos (também) por um terceiro, o legislador penal seja aqui particularmente exigente quanto às garantias de uma decisão livre, não requerendo, no âmbito do n.º 1 do artigo 170.º, as formas qualificadas de perturbação da autonomia presentes nos outros tipos de crimes sexuais. Ainda se compreenderá que o aproveitamento objetivo de situações de desamparo seja o bastante, sem exigência de formas individualizadas de ‘pressão’ sobre a vontade da vítima (contra, Anabela Rodrigues, ob. cit. , p. 519-520). Mas já fica por explicar, à luz da necessidade de tutela da liberdade sexual, porque é que é dispensável a comprovação de qualquer ofensa, ainda que apenas situativamente indiciada, desse bem jurídico.

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